Tecnologias que conectam o cérebro a dispositivos eletrônicos já permitem que pessoas com paralisia voltem interagir com o mundo; no Brasil, exemplos como o do Dr. Raul Nogueira e do Dr. Miguel Nicolelis evidenciam que revolução está mais próxima do que imaginamos
Imagine controlar um computador, uma cadeira de rodas ou até um braço robótico apenas com o pensamento. O que antes parecia ficção científica começa a se concretizar em hospitais e centros de pesquisa. As chamadas interfaces cérebro-máquina (ou Brain-Computer Interfaces, BCIs) são tecnologias capazes de captar os sinais elétricos emitidos pelo cérebro, interpretá-los e transformá-los em comandos para operar aparelhos eletrônicos.
Em termos simples, o pensamento é “traduzido” para uma linguagem que as máquinas conseguem entender. Um sensor capta essa atividade cerebral, um software interpreta os dados e envia o comando ao equipamento — seja para mover uma cadeira de rodas, digitar em um teclado virtual ou controlar um braço robótico.
O Stentrode: uma revolução minimamente invasiva
Um dos avanços mais promissores nessa área é o Stentrode, desenvolvido pela empresa Synchron. O dispositivo atua como um stent vascular com eletrodos incorporados, posicionado no seio sagital superior, próximo ao córtex motor. A grande inovação está no método de implantação: o Stentrode é colocado por via endovascular, sem necessidade de abrir o crânio. O procedimento é semelhante ao tratamento de aneurismas ou de um AVC isquêmico, realizado em centros que já contam com neurorradiologia intervencionista.
Ensaios clínicos demonstraram que pacientes com esclerose lateral amiotrófica (ELA) e paralisias graves conseguiram utilizar o implante para se comunicar digitalmente, clicando em telas de computador quando associado a sistemas de rastreamento ocular. Importante ressaltar: não foram relatados eventos adversos graves relacionados ao dispositivo nos estudos iniciais.
Neurorradiologia intervencionista: conectando cérebro e tecnologia
A chegada do Stentrode representa mais do que um avanço tecnológico: ela amplia o campo de atuação da neurorradiologia intervencionista, que passa a desempenhar um papel central no cenário das interfaces cérebro-máquina. Essa especialidade, tradicionalmente reconhecida pelo tratamento de aneurismas, malformações vasculares e manejo endovascular do AVC, agora se posiciona também como porta de entrada da neurotecnologia no sistema de saúde.
Com técnicas já consolidadas, como o cateterismo cerebral, os neurorradiologistas intervencionistas estão preparados para implantar dispositivos como o Stentrode de forma segura, ágil e com menor risco para o paciente.
Do Brasil para o mundo
No Brasil, o neurologista Raul Nogueira, cearense e professor da Universidade de Pittsburgh, está entre os pioneiros na implantação de dispositivos endovasculares como o da Synchron. Casos recentes mostram que pacientes anteriormente incapazes de se comunicar voltaram a interagir com familiares e profissionais de saúde por meio do pensamento.
Outro destaque é o neurocientista Miguel Nicolelis, que liderou o Projeto Andar de Novo em parceria com a Unicamp. Seu trabalho demonstrou que o cérebro pode incorporar máquinas ao esquema corporal, como ficou registrado no histórico chute inicial da Copa de 2014, realizado com um exoesqueleto controlado pelo pensamento. Essas iniciativas reforçam que o Brasil não apenas acompanha, mas também contribui ativamente para a vanguarda mundial das interfaces cérebro-máquina.
Benefícios, desafios e perspectivas
Os principais beneficiados por essa tecnologia são pacientes com esclerose lateral amiotrófica (ELA), sequelas graves de acidente vascular cerebral (AVC), lesões medulares e outras doenças neuromusculares avançadas, que ainda enfrentam grandes limitações para manter sua autonomia. Apesar disso, persistem obstáculos importantes: o custo elevado dos dispositivos, a necessidade de terapia antiplaquetária nos casos de implantes endovasculares, a ausência de regulamentação clara por parte de órgãos como Anvisa e FDA e a escassez de equipes treinadas em hospitais públicos e privados.
Especialistas acreditam que, nos próximos anos, os dispositivos se tornarão menores, mais estáveis e acessíveis. Parcerias entre universidades, startups e hospitais devem acelerar a chegada dessas soluções ao SUS e ampliar seu uso em clínicas privadas.
Se Nicolelis demonstrou que o cérebro pode aprender a controlar máquinas, o Stentrode mostra que isso pode ser feito de modo minimamente invasivo, seguro e clinicamente aplicável. A neurorradiologia intervencionista desponta como a especialidade que fará a ponte entre inovação tecnológica e prática médica, contribuindo para transformar pensamento em ação e, acima de tudo, em qualidade de vida.
Dr. Diego Bandeira – CRM 11.379 / CE – RQE 11.817
Neurologista e Membro da Brazil Health