Meu pai tem aparecido seguidamente nos meus sonhos, talvez por conta das campanhas publicitárias para o Dia dos Pais – foi também, a partir de um agosto, em 2011, que fomos privados de sua companhia. No sonho mais gravado na memória nessas últimas semanas (o mais recorrente?), Cazé me encontra no Centro e pergunta: “Onde se bebe uma Brahma Extra nesta cidade?” Tento explicar que não é possível beber mais sua cerveja predileta que ficou cada vez mais difícil de encontrar até desaparecer de vez nesta década.
A Brahma Extra era uma cerveja – criada em meados do século passado, quando a Companhia Cervejaria Brahma não havia virado esse conglomerado Ambev – mais encorpada, com teor alcóolico maior (5,5%) do que a média e um pouco mais amarga. Era a cerveja do meu pai: sempre tinha em casa e preferia bares e restaurantes que serviam Brahma Extra. “Uma cerveja gelada, gelada sem passar do ponto, é sempre uma boa companhia”, ensinou meu pai, que não bebia chope porque lhe fazia mal ao intestino: sua teoria envolvia o processo de pasteurização.
No tal sonho, andávamos um bocado pelo Centro do Rio de Janeiro, hábito que ele tinha e passou de pai para filho. Cazé (apelido de Oscar José que família e amigos usavam) trabalhou a maior parte da vida no Centro, em unidades do Banco do Brasil. Quando entrei na universidade, aos 18 anos, ele passou a me chamar para almoçar todas as semanas no Centro. Dizia ele lá em casa que era para termos conversas de homem para homem. Nunca descobri o que isso significava exatamente porque a gente falava de bebida, de restaurantes, da cidade, do trabalho, da faculdade, dos amigos, das mulheres, de política, dos tempos dele e dos novos tempos – temas de boas conversas em mesas de bares ao longo da vida, com todo tipo de companhia.
Nesta época, ele me deixou algumas lições valiosas que levei para a vida. “Se trabalho fosse bom, ninguém te pagava para fazer”; “os amigos, você precisa cultivar e ter sempre por perto; os inimigos, é melhor nem ver: fazem mal ao fígado”; “cuidado com quem não bebe; geralmente está escondendo alguma coisa”. E também tentou me convencer a aprender logo a dirigir, a me vestir melhor para ir ao trabalho, a não exagerar nas manifestações de afeto com as moças de preferência do meu coração – lições que não aprendi. Tínhamos muitas semelhanças e outras tantas diferenças. “Tem gente que se aborrece para não pagar e tem gente que paga para não se aborrecer” – dizia ele, que preferia se aborrecer, a mim, que preferia pagar.
Meu pai me apresentou a uma dúzia de restaurantes de qualidade no Centro – os preferidos dele também já não existem. Levou o jovem universitário para provar o Labskaus, do Bar Ficha (na Rua Teófilo Otoni), especialidade da Dona Maria (Schaade), a proprietária, alemã, que também cuidava da cozinha; para olhar as panelas do Penafiel (na Senhor dos Passos), antes de pedir um prato de bacalhau – às vezes, um ossobuco de vitela com arroz de brócolis o fazia deixar a especialidade do restaurante português; para encarar a moqueca do Oxalá, na Cinelândia; para comer paio português na Lisboeta (na Frei Caneca), não sem antes de atacar uma empada de camarão, com pimenta, de entrada; e, naturalmente, para conhecer seu restaurante predileto, o Real (na Praça Quinze), auto intitulado o Rei das Peixadas, que incorporou ao cardápio uma Garganta de Cherne à Oscar, uma adaptação para sua pedida mais constante, com mudanças no acompanhamento.
Nestes restaurantes habituais, conhecia pelo menos um garçom pelo nome – no Real, quase todos – e fazia questão de pedir sugestões, mesmo conhecendo o cardápio de cor e mesmo tendo o hábito de repetir os pratos. “Em qualquer bar, o mais importante é ser bem atendido”, repetia. “E chamar o garçom pelo nome sempre ajuda”, ensinou. Mas tinha um paladar muito mais apurado que o meu, reclamava quando os pratos não saíam como deveriam e deixou de frequentar alguns lugares – nenhum da lista acima – porque o padrão caiu. Para os botecos, dos próximos de casa ou dos estádios onde íamos ver jogos do Bangu, a regra única era servir cerveja em garrafa – podia até não ter Brahma Extra, só precisava estar gelada.
Caminhar pelo Centro do Rio – creio que para todos que passaram, pelo menos, dos 40 anos – é fazer um inventário de cicatrizes, de perdas de lugares amados e agora fechados. A pandemia fez as vítimas mais recentes, de um processo de esvaziamento que vem de longe. “No 28, tem Brahma Extra”, disse o Cazé naquele tal sonho que ficou na memória (ou se repetiu). O 28 – o nome de batismo era Pastoria – foi o último restaurante (Rua Barão de São Félix 28) que o velho frequentou no Centro do Rio, agora já neste século 21, depois que aqueles da lista foram fechando um a um. Ele está certo: o 28 tinha Brahma Extra. Mas não há mais o 28, que fechou no meio da década passada, quando meu pai também não estava mais por aqui.

Sigo, entretanto, caminhando muito pelo Centro e, depois de mais um sonho, perambulei ali pela Lapa atrás de um lugar onde tivesse cerveja em garrafa, que não fosse “artesanal” – como o Cazé, gosto mesmo de cerveja pilsen, com gosto de cerveja (ele não ia gostar de saber que, pouco antes de desaparecer, a Brahma Extra tinha uma versão Weiss). “Procura aí no celular – não é para isso que serve esse computador de bolso?” – imaginei uma frase que não me lembro dele ter usado. Meu pai detestava telefones, principalmente celulares.
Descobri que tinha Serramalte, uma cerveja que ele me ensinou a gostar ainda na adolescência (antes dela ser adquirida pela Antártica), no Cacimba, numa esquina da Gomes Freire com a Mem de Sá, em frente a um bar chamado Choperia do Papai e perto de um restaurante (no qual nunca tinha reparado) batizado de Marizé – minha mãe era Mariza, com Z, e já apresentei aqui o Cazé. Com quem, aliás, sigo conversando sobre a vida, suas encruzilhadas e seus botequins.