Na última reunião de chope com meus amigos velhinhos, eu cheguei atrasado e já encontrei, em adiantado estado etílico, uma acalorada discussão sobre atopia. Por não ter a menor ideia do que significava aquilo, preferi ficar calado. Seria alguma coisa ligada a utopia ou distopia? Melhor não opinar, decidi e cumpri. Por sorte o assunto mudou para a escolha de Carlo Ancelotti como técnico da nossa seleção de futebol. Escolha que, surpreendentemente, foi aprovada por unanimidade. E unanimidade é coisa raríssima naquele grupo. Terminada a farra, chamei um taxi (continuo a implicar com Uber) e dei carona ao Nelsinho, sabidamente o intelectual do grupo. Aproveitei a minha gentileza para consultá-lo sobre o que diabo seria aquela tal de atopia. Como eu esperava ele não se fez de rogado e, didaticamente, explicou:
“Meu caro, existem quatro conceitos que dizem respeito à maneira como a vida se organiza na sociedade moderna. E são ligados à percepção de espaço físico e a dados concretos dos estilos de vida atuais ou de futuro imaginário. Comecemos pela utopia e distopia, que são os mais conhecidos, e tenho certeza de que você os conhece. A utopia é a idealização de um lugar onde tudo funciona de modo perfeito. Ela reflete o desejo dos homens de criar uma sociedade baseada na justiça, harmonia e igualdade social. Obviamente, trata-se de situações fictícias, mas servem para impulsionar e guiar a busca de desejáveis sociedades mais justas e igualitárias, promovendo o avanço de políticas ambientais e sociais. A distopia, opostamente à utopia, trata ficcionalmente de sociedades marcadas por opressão, falta de liberdade e desigualdade extrema. As distopias são úteis quando usadas para alertar sobre os perigos dos regimes totalitários, onde os governantes controlam todos os aspectos da vida dos cidadãos através de severa vigilância e manipulação das informações. Atualmente, com o desenvolvimento da inteligência artificial, do monitoramento digital e da identificação facial, surgiram preocupações porque, se mal utilizadas, aumentam os receios distópicos. Já a atopia, que foi a sua pergunta, refere-se a um recente conceito onde as atividades existem sem estarem ligadas a um determinado espaço físico. Vamos pensar num exemplo que pode facilitar a compreensão deste conceito. Imagine um escritor cujo estilo mistura gêneros diferentes e não pode ser classificado como romance, ensaio, crônica ou autoajuda. Assim, ele atua numa área sem definição clara, longe das classificações tradicionais. Com a internet, a atopia se espraiou através dos chamados ‘nômades digitais’, aquelas pessoas que trabalham e se relacionam remotamente sem nenhuma vinculação a um determinado local fixo ou pré-determinado. Está entendendo até aí?”.
Diante da minha resposta positiva, Nelsinho continuou: “Você não perguntou, mas ficou faltando falar sobre a heterotopia, que é mais fácil de entender por se tratar de situações concretas. A heterotopia diz respeito a espaços reais sujeitos a procedimentos e situações que somente ocorrem naqueles locais. Os hospitais, cemitérios ou quarteis são exemplos de heterotopias, por possuírem regras próprias, diferentes das existentes nas sociedades convencionais. Ao contrário da utopia e distopia, que são imaginárias, as heterotopias existem concretamente. Concluindo, todos esses quatro conceitos são maneiras de pensar e relacionar a sociedade e o espaço físico. Enquanto as utopias e as distopias servem para refletir um futuro possível, por outro lado as atopias e as heterotopias traduzem o presente de maneira abstrata ou concreta. Estamos chegando, amigo, aqui eu fico”. O meu professor desceu do carro, agradeci a aula e fui pra casa.
Passei o resto do trajeto pensando em como nossa reunião alcoólica estava mudando de patamar. Se antes, entre uma rodada e outra de chope, a discussão mais intelectualizada era sobre Pelé e Maradona, agora já se discutia conceitos tão complexos que, se há um ano alguém falasse que isso aconteceria, fatalmente seria taxado de utópico.