A minha avó e o código de conduta

Depois de um longo tempo de suspensão, motivada por justíssimos motivos etários — uma lombalgia aqui, uma artrite acolá, um joanete em beltrano, uma coluna com viveiro de papagaios em sicrano — conseguimos agendar o nosso tradicional chope geriátrico. Como


Depois de um longo tempo de suspensão, motivada por justíssimos motivos etários — uma lombalgia aqui, uma artrite acolá, um joanete em beltrano, uma coluna com viveiro de papagaios em sicrano — conseguimos agendar o nosso tradicional chope geriátrico.

Como sempre, fosse pelo efeito do álcool ou pela necessidade de se fazer ouvido — o que não ocorre entre os familiares dos idosos — ou pela deficiência auditiva da maioria, todos falavam alto e simultaneamente. Os assuntos eram aqueles de sempre: a má qualidade das músicas atuais, o péssimo futebol — oh, saudade de Pelé, Garrincha… esse tal de Neymar não teria vez no escrete de 58 ou de 70 — o baixo nível da política (trocamos Ulisses Guimarães por Zé Trovão), a nossa empresa hoje é boa, mas não chega perto do que era no nosso tempo.

Mas a nostalgia demorou pouco e assuntos atuais também apareceram: anistia. Libertadores. Escândalo do INSS. Emendas parlamentares. Feminicídios. Buscas e apreensões. Celulares jogados das janelas. CNHs sem exames. Mais feminicídios. Progressão de penas. Rússia x Ucrânia. Agricultores franceses sabotando o acordo UE x Mercosul. O imperador Trump querendo o petróleo venezuelano na mão grande. Cassação de deputados. Novamente feminicídios. Terras raras. Carros elétricos. Inutilidade da COPs. Cobradores de pênaltis do Flamengo. Palestina e palestinos. Roubo no Louvre. Outra vez feminicídios. Polícia Federal. Enchentes no Sul. Rios secos na Amazônia. Demarcação de terras indígenas (desculpem o mau jeito, Demarcação de terras dos povos originários). Inteligência artificial. Xandão ditador x Xandão herói. Flamengo ou Palmeiras. Flávio Zero1 x Tarcísio. Cirurgias de Bolsonaro. Caetano, Gil, Chico, Alceu e João Gomes. Agente Secreto, Kleber Mendonça e Wagner Moura. Zezé di Camargo e as herdeiras do SBT. Comando Vermelho. Primeiro Comando Puro e PCC. Atentados em Sidney. Ana Maria Gonçalves e Ailton Krenak. Regimes 6×1 ou 5×2. Malafaia. Vacina da dengue. Mounjaro e Ozempic. Padre Lancellotti. Bets e Fintechs.

Num raro momento de silêncio, entre um gole outro, ouve-se alguém questionar:

— É lícito um juiz andar de carona em avião de alguém que ele vai julgar?

— É aceitável juízes julgarem casos em que o réu é defendido por um parente seu?

— É razoável juízes serem punidos com aposentadoria integral quando cometem delitos?

— O que vocês acham de juízes participarem de confraternizações/congressos/convescotes promovidos por organizações que podem vir a ser julgadas por eles?

Contrariando Nelson Rodrigues, houve unanimidade inteligente nas respostas contrárias àquelas perguntas, mas um octogenário levantou o braço e, dedo em riste, afirmou com convicção: “Mas isso vai acabar. O presidente do Supremo vai implantar um Código de Conduta para acabar com esses abusos.”

Eis que o mais assíduo das nossas reuniões, o Caladinho, aquele que pouco fala, mas quando o faz é contundente e verdadeiro, se levanta, e toma a palavra: “Esse tal Código de Conduta, de Honra, de Ética, seja lá do que for é uma vergonha. Todos esses juízes são maiores de idade e, suponho, até sabem ler e escrever. Distinguem muito bem o certo do errado, portanto não precisam de códigos, regulamentos, instruções ou qualquer coisa semelhante para se comportarem com honestidade e retidão de caráter. O que está faltando não é código de porra nenhuma, o que falta é o que a minha velha avó, matuta nordestina, mas cheia de sabedoria, se viva fosse, diria: “vergonha, meu neto, o que falta é vergonha na cara desse povo.”

Aplaudido até pelas mesas vizinhas, Caladinho sentou-se e, bem na dele, emborcou uma última caneca de chope, bem geladinho. 



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