O ‘liberalismo clássico’ de Alexandre de Moraes

Já tem sido um verdadeiro escárnio ver o presidente Lula se apresentar como um nobre defensor do liberalismo contra o protecionismo trumpista, ao lado de nada menos que a ditadura chinesa. Resta demonstrado, porém, que tudo pode piorar. O ministro


Já tem sido um verdadeiro escárnio ver o presidente Lula se apresentar como um nobre defensor do liberalismo contra o protecionismo trumpista, ao lado de nada menos que a ditadura chinesa. Resta demonstrado, porém, que tudo pode piorar. 

O ministro Alexandre de Moraes, não satisfeito com sua notoriedade no Brasil, parece estar em uma jornada para virar ícone mundial. Na revista New Yorker, ele apareceu em um detalhado perfil, intitulado The Brazilian Jugde Taking on the Digital Far Right, como um destemido soldado contra o extremismo, que estaria, por isso mesmo, na mira de Donald Trump, Jair Bolsonaro e Elon Musk. Podemos utilizar esse espetáculo de exibicionismo para tentar compreender melhor a percepção do próprio personagem sobre seu lugar na vida pública, o que certamente será útil aos futuros historiadores.

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Para os repórteres da publicação, Moraes dissertou que o Brasil tem sido vítima de um “abuso da liberdade de expressão para ofender, ameaçar e coagir”, conduzido por uma coalizão internacional de “extremistas populistas de direita” que teria no bolsonarismo sua face nacional mais visível. De acordo com o ministro do STF, esse gênero de populistas percebeu o poder da internet depois da Primavera Árabe e aprendeu a utilizar os algoritmos das redes sociais a favor de “martelar” suas agendas com uma repercussão outrora inigualável.

Alexandre de Moraes
Moraes, durante eventos sobre os atos de 8 de janeiro – 08/01/2025 | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Foi nesse contexto que Moraes proferiu a esdrúxula ideia de que os nazistas, se tivessem a oportunidade, teriam utilizado o X para conquistar o mundo (em vez de censurá-lo para esquivar-se dos contrafactuais e da liberdade de crítica de suas teses absurdas, como seria de se esperar). Esse populismo teria tido sucesso em perverter palavras como “liberdade”, colocando-as a serviço de suas pretensões golpistas e autoritárias.

Moraes reafirmou para a reportagem suas convicções antigas sobre a necessidade da repressão dura a criminosos, porque as pessoas precisam saber claramente que as violações à lei têm consequências. Lembrou que a esquerda o odiava quando chegou ao posto, nomeado por Michel Temer, e hoje é “alvo” da direita. A seu juízo, suas posições são coerentes com sua “missão”: proteger a instituição que ocupa com “mão de ferro” do que considera uma ameaça existencial declarada pelos “inimigos reacionários”.

Insistiu na ideia delirante de que os atos de vandalismo de 8 de janeiro poderiam ser parte de uma estratégia ampla para um golpe de Estado que poderia receber o apoio de governadores estaduais e policiais militares de outras regiões. Isso justificaria seu ato antidemocrático de suspender o governador do Distrito Federal na época. “Houve definitivamente um risco” de a democracia acabar no Brasil, garantiu Moraes, “e ainda há”. O ministro ratificou que temia por sua vida e que “o herói do filme tem que continuar” — o herói, evidentemente, sendo ele próprio; o filme, a vida pública brasileira, na qual supostamente ele e seus pares teriam o papel de guerreiros de um honroso exército destinado a defender o país das forças do mal (dentro e fora do Brasil).

O mosaico se completa, porém, na matéria mais recente da The Economist, The judge who would rule the Internet. O texto começa reconhecendo que apenas no Brasil, onde a Suprema Corte dispõe de tanto poder, um fenômeno como o de Alexandre de Moraes se tornaria possível. Surpreende, no entanto, ao relatar que Moraes considera a si mesmo um “liberal clássico” (minha santa Aquerupita!) que defende “o governo republicano e um papel limitado do Estado na economia”. Conforme a reportagem, mais do que uma questão ideológica, o problema de Moraes com o bolsonarismo seria “pessoal”, o que seria sugerido por uma declaração que o texto lhe atribui: “As pessoas estão começando a perceber que não adianta muito me ameaçar. Elas só vão perder tempo — ou vão para a cadeia”.

Curiosamente, a reportagem da The Economist adota um tom de muito mais receio do poder que Moraes vem demonstrando; chega a referenciar um intelectual de esquerda não-identificado, que comenta que pessoas com viés autoritário devem ser temidas, ainda que estejam temporariamente atuando contra nossos adversários políticos. “Quando a roda girar”, esse esquerdista, aparentemente tão lúcido quanto possível para um esquerdista, arrematou dizendo, “eu poderia ser mandado para a cadeia”.

The EconomistThe Economist
Publicação da revista inglesa | Foto: Reprodução/The Economist

Então, caro leitor, não apenas Lula e Xi Jingping, mas, nestes tempos em que se vira tudo ao avesso, Alexandre de Moraes também é campeão do liberalismo contemporâneo. As atitudes repressivas de liberdades individuais e concentradoras de poder que ele vem personificando dentro do Supremo Tribunal Federal contrariam, é evidente, todas as orientações que nos foram legadas por John Locke, Montesquieu, Tocqueville e tantos outros nomes de destaque da tradição clássica do pensamento liberal. O intelectual esquerdista que se manifestou ao final da reportagem da The Economist entendeu o valor da instituição mais importante defendida por esses autores: o Estado de Direito, em que as regras impessoais devem prevalecer sobre a vontade arbitrária de um ou de onze homens.

No entanto, uma outra verdade transparece das duas matérias que sintetizamos. À revelia do que as simplificações retóricas possam reverberar, Alexandre de Moraes não é mesmo, pessoalmente, um homem “de esquerda” — apesar de muitos de seus pares no STF serem ligados diretamente ao lulopetismo, que os colocou onde estão. Ele é um homem de uma corporação, como o eram os militares que conduziam as mobilizações intervencionistas do passado imediatamente pós-tenentista do Brasil. As ofensas à corporação são entendidas por ele como atentados à democracia a exigir constante enfrentamento. Com isso, juízes se convertem em cruzados de espada em punho e, sob o pretexto de uma interminável necessidade de emergência, deixam de cuidar do único alicerce em que se deveriam apoiar: a lei. 



Conteúdo Original

2025-04-19 11:00:00

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