‘A gente só tem direito ao chão?’: nas madrugadas de inverno no Rio, população de rua relata que tem cobertas e colchões apreendidos – Agência de Notícias

g1 percorreu a cidade em madrugadas com temperatura na casa dos 11°C e conversou com pessoas em situação de rua: ‘Tem sido difícil sobreviver’, diz homem. Com informações do G1. “Tio, o senhor me dá um cobertor pra eu deitar



g1 percorreu a cidade em madrugadas com temperatura na casa dos 11°C e conversou com pessoas em situação de rua: ‘Tem sido difícil sobreviver’, diz homem.

Com informações do G1. “Tio, o senhor me dá um cobertor pra eu deitar ali?”, “tia, a senhora não sabe o frio que está fazendo”, “tem sido difícil sobreviver”. Frases como essas se repetem nas madrugadas frias do Rio de Janeiro, ditas por pessoas em situação de rua que enfrentam a fome e o frio sem nenhuma estrutura. De Copacabana à Lapa, da Glória à Ilha do Governador, o g1 rodou pela cidade e presenciou cenas de vulnerabilidade que se espalham pelas calçadas.

Sem proteção adequada, homens, mulheres, crianças e até idosos improvisam com papelõessacos plásticos e pedaços de cortina para tentar se proteger das baixas temperaturas.

Para piorar, precisam lutar para não perder o pouco que têm: seja em furtos de criminosos ou em ações de ordenamento da Prefeitura do Rio. Segundo relatos ao g1 e vídeos em redes sociais, agentes da Secretaria de Ordem Pública têm recolhido cobertores e outros itens de quem dorme pelas ruas.

Um vídeo feito pela ONG É Por Amor mostra agentes da Seop removendo papelões de homens que dormiam sobre eles em Copacabana, na Zona Sul do Rio, na noite da última segunda-feira (15) (veja acima).

“A gente distribuindo quentinhas e a ‘Ordem Pública’ fazendo o trabalho deles”, escreveu a ONG nas redes sociais. “Até quando teremos que ver as pessoas em situação de rua terem o pouco que tem sendo levado por uma política higienista? Essas pessoas precisam de política pública e não de apanhar de cassetete”, acrescentou a organização.

Situações como essa foram relatadas por pessoas em situação de rua ao g1 em diferentes pontos da cidade.

Isso em uma época em que tradicional calor do Rio dá lugar a noites com um frio que o carioca não está acostumado. Segundo a Climatempo, julho já teve oito madrugadas com temperaturas abaixo de 13 °C. A mais baixa foi registrada no dia 16: 10,7 °C.

Na Praça da Cruz Vermelha, no Centro, uma mulher que estava com as netas de 6 e 9 anos em busca de doações relatou que quase teve suas sacolas, com roupas e documentos, levadas por agentes – os nomes dos entrevistados em situação de rua foram preservados na reportagem.

“Quando eles veem os moradores de rua com sacolas, colchão, cobertores volumosos, eles vêm logo e tomam tudo. Esses dias, eu estava sentada aqui com as minhas sacolas esperando quentinha, eles já vieram botando a mão pra tirar. Eu tive que explicar que moro na ocupação, não na rua, e que tô aqui porque tô desempregada”, relatou.

Na Praça Cardeal Arcoverde, em Copacabana, um grupo disse que a doação tem sido pouca nos arredores, e as ações de ordenamento da prefeitura têm sido mais frequentes.

“Eles tiram o pouco que a gente tem. Eu estava com uma colcha grossa e levaram. A gente tenta fugir do sereno, mas quando chove é impossível. Não dorme, só treme”, diz um homem.

Até colchões têm sido retirados, contam:

“Se não tiver ninguém, ninguém mexe. Mas se um de nós deitar em cima, eles vêm e pegam. A gente só tem direito ao chão? Ao frio?”

Agressões e ameaças

Em frente a uma agência bancária, um homem contou que agentes da prefeitura usam cassetetes contra quem resiste ao recolhimento:

“Eu estava com um cobertor grossão, quentinho, estava dando pra me manter de madrugada tranquilo. Veio a Ordem e me tomou. E não tem desenrolo. Se eu falar algo, eles vêm com o cassetete e descem a porrada”, conta o homem.

Ao lado dele, uma mulher que cata recicláveis relatou uma cena de violência:

“Não tem muito tempo, tivemos que levar um moço que dorme aqui pro Miguel Couto porque ele já estava com um resfriado muito forte, foi brigar com a Guarda [Municipal] e apanhou tanto que não conseguia respirar. Eles não querem saber se a gente tá com frio, não tem desenrolo, desenrolo na rua é porrada”.

Ações solidárias

Na Praça da Cruz Vermelha, no Centro, a ordem dos agentes, segundo os moradores de rua, é clara: não se pode mais dormir no centro da praça — só nas marquises. Na última segunda-feira (15), o g1 esteve no local e viu dezenas de pessoas se amontoando; o interior da praça, por sua vez, estava vazio.

cobertor, escasso, é distribuído principalmente por voluntários. Em uma das ações da ONG Ação entre Amigos, na Avenida Presidente Vargas, grávidas e crianças estavam entre as dezenas de pessoas na fila por uma quentinha e um agasalho.

O grupo, ligado à Paróquia da Santíssima Trindade, no Catete, atua semanalmente com distribuição de cerca de 200 refeições e roupas. O g1 acompanhou uma das ações, que durou pouco mais de 1 hora.

“A senhora não sabe o frio que tem feito de madrugada na rua, tia”, disse uma menina.

Outra frente de apoio, a ORES (Organização de Reintegração e Estímulo à Socialização), da Ilha do Governador, atua com advogados e assistentes sociais para ajudar pessoas em situação de rua a conseguirem documentos e acesso a direitos, como benefícios, além de outras ações como doações de roupas, lanches e acesso a banhos e itens de higiene.

Furtos

Uma mulher atendida pela Ores relatou que furtos e roubos também são um problema para quem vive na rua.

“A gente pega e recebe uma roupa, um agasalho, mas quando dorme, levam. Agora, estou com um cobertor, mas não sei até quando.”

O que diz a prefeitura

g1 entrou em contato com a Secretaria de Ordem Pública e teve como resposta que a pasta “realiza diariamente ações de ordenamento urbano, desobstrução de áreas públicas e acolhimento a pessoas em situação de rua (neste caso, em apoio à Secretaria Municipal de Assistência Social – SMAS).”

Segundo a secretaria, as ações acontecem em pontos diferentes da cidade, “com foco especial em áreas com grande concentração de usuários de drogas”. Ainda de acordo com a nota, desde janeiro deste ano foram apreendidos mais de 4 mil objetos perfurocortantes, cerca de 2 mil itens utilizados para consumo de drogas e 28 réplicas de armas.

No entanto, a Secretaria de Ordem Pública não se posicionou sobre as denúncias de apreensões de cobertores, papelões, colchões e outros itens pertencentes às pessoas em situação de rua.

g1 voltou a questionar sobre esse tema e não teve resposta.

Questionada, a Secretaria Municipal de Assistência Social disse que, no primeiro semestre de 2025, foram criadas 250 novas vagas permanentes de acolhimento para pessoas em situação de rua e que com a chegada do inverno foram abertas mais 160 vagas temporárias em equipamentos da rede e espaços privados.

“Os acolhidos dormem em local seguro, protegidos do frio e com direito a alimentação, kit de higiene, cobertor e roupa de cama”, afirma o posicionamento.

“A rede de acolhimento dispõe de 2.707 vagas regulares. É importante destacar que o acolhimento não é obrigatório, assim como a permanência nos equipamentos: ambos dependem da aceitação da pessoa em situação de rua, e um mesmo indivíduo pode ser acolhido mais de uma vez”, continua a nota enviada pela pasta.

De janeiro a junho deste ano, foram registrados 22.946 acolhimentos — um aumento de 261% em relação ao mesmo período de 2024, segundo a secretaria.

A secretaria disse ainda que não precisa de documento para acessar os abrigos, uma vez identificada a necessidade, mas ressaltou que o acolhimento não é compulsório: depende da aceitação da pessoa em situação de rua.

Por que não ir a abrigos?

Ao serem questionados por que não procuram os abrigos ou dormitórios da prefeitura, muitos responderam: “Lá é pior.”

Entre os motivos apontados estão a convivência com pessoas sob efeito de drogas e os constantes furtos.

Outro fator é o vínculo com os animais que cuidam nas ruas — os cães são fonte de afeto e também ajudam a aquecer nas madrugadas frias.

A Secretaria Municipal de Assistência Social disse que os abrigos as regras são “as da boa convivência e do respeito aos direitos de todos” e que “em casos de dependência química, o acolhido é encaminhado a tratamento em unidade de saúde do território de acolhimento.”

Perfil da população de rua no Rio

Segundo o último balanço da prefeitura do Rio, divulgado em 2023, quase 8 mil pessoas viviam nas ruas da cidade.

O censo mostrou que 1.227 pessoas deles enfrentam a dependência química.

Números do levantamento:

  • 7.865 pessoas vivem nas ruas da cidade — aumento de 8,2% em relação a 2020;
  • 82% são homens;
  • 84% se autodeclaram pretos ou pardos;
  • 64% têm ensino fundamental incompleto;
  • 11% não sabem ler ou escrever bilhetes simples;
  • 40,5% têm entre 31 e 49 anos;
  • 446 são idosos — alta de 26% desde 2020;
  • 55% dos idosos têm algum tipo de deficiência;
  • 1.227 enfrentam a dependência química.

O número de idosos nas ruas aumentou 26% em comparação com os dados de 2020, totalizando 446 pessoas. Desse total, 91% têm idade entre 60 e 69 anos. Mais da metade dos idosos que não possuem lar (55%) têm algum tipo de deficiência.

Para driblar o frio, um idoso estava deitado sob um colchão feito com caixas de leite costuradas uma a uma em uma passarela na Ilha do Governador (veja na imagem abaixo). A parte metálica da caixa de leite ajuda a isolar a temperatura.



Conteúdo Original

2025-07-21 13:00:00

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