Lembrei de um clássico da literatura ao assistir a “Cortina de fumaça”, lançada na AppleTV+. “Fahrenheit 451” é uma ficção. A ação se desenrola num ambiente distópico. O personagem principal da história de Ray Bradbury é Guy Montag, um bombeiro. Sua missão, entretanto, em vez de apagar chamas, é provocá-las. Ele queima livros a serviço do Estado, que vê a cultura como um inimigo ameaçador. Na narrativa que faz uma metáfora das ideologias obscurantistas, o fogo é um símbolo do controle do pensamento crítico. A obra é de 1953, mas remete a situações atuais.
A série criada por Dennis Lehane não é ficção científica. Ela se baseia num true crime e foi tema de um podcast famoso chamado “Firebug” (você acha no Spotify). Assim como o livro, contudo, a produção apresenta o fogo como emblema de poder. São nove episódios e há oito disponíveis na plataforma. O último chegará na próxima sexta-feira. Recomendo.
Acompanhamos Dave Gudsen (Taron Egerton). Por motivações e contextos diferentes, o protagonista faz pensar em Montag (aqui vou evitar o spoiler). Bombeiro com especialização em investigar incêndios criminosos, ele está na corporação há alguns anos e é muito amigo do chefe, Harvey Englehart (Greg Kinnear). Parece um sujeito comum, casado com uma bibliotecária a quem trata com carinho. Umberland, cidade onde se passa a ação, está sendo aterrorizada por dois incendiários em série. Gudsen trabalha no caso. A detetive Michelle Calderone (Jurnee Smollett) chega de Los Angeles para fazer dupla com ele.
O enredo principal se abre em subtramas. Somos informados também do que se passa nas vidas privadas de ambos. No caso dele, dos conflitos conjugais provocados pela relação ruim com o enteado. No caso dela, de um passado familiar complicado, com uma mãe criminosa. Esses acontecimentos ajudam a compor o perfil dos personagens.
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O roteiro logo revela a identidade de um dos incendiários. Ele é Freddy Fasano (Ntare Guma Mbaho Mwine), um ajudante de cozinha numa rede de fast food que vende frango frito. Tímido, desajustado e solitário, ele tem grandes cenas. O ator calibra a emoção e comove. E por falar no elenco, Taron Egerton, indicado ao Emmy por “Black bird” — também de Lehane —, mostra grande presença (tem crítica da minissérie aqui). Seu desempenho é sólido, resultado de uma composição minuciosa.
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“Cortina de fumaça”, embora seja uma aventura policial, não é exatamente um suspense. Os mistérios são esclarecidos bem antes do fim. O espectador, no entanto, fica grudado. É uma daquelas tramas que vão ganhando consistência a cada episódio, coisa que só ocorre quando o roteiro tem qualidade e não depende de truques de fôlego curto e reviravoltas fáceis. E quem quiser conhecer a história real que inspirou a série pode mergulhar nas pesquisas por John Leonard Orr. Eu já fiz isso.
2025-08-10 07:01:00