por um ano, O GLOBO acompanhou dez adolescentes do tráfico; seis já morreram

O sorriso infantil integra a inocência de Mateus (nome fictício). Os dentes, ainda pequenos, aparecem na boca semiaberta, de quem é pego de surpresa pelo registro de uma câmera. O olhar também é singelo, talvez porque o menino não ultrapasse


O sorriso infantil integra a inocência de Mateus (nome fictício). Os dentes, ainda pequenos, aparecem na boca semiaberta, de quem é pego de surpresa pelo registro de uma câmera. O olhar também é singelo, talvez porque o menino não ultrapasse os 3 anos. Está de chinelos, bermuda jeans, sem camisa e boné atravessado na cabeça — a pele é morena, e o cabelo é castanho tom de mel. Nas mãos, no entanto, o viço da primeira infância lhe é quase roubado: há cerca de mil reais, em notas de R$ 100 e de R$ 50. Catorze anos depois, em dezembro de 2024, aos 17, ele foi morto por policiais do 14º BPM (Bangu) ao tentar invadir, com outros traficantes do Comando Vermelho, um território da milícia. Semanas antes, havia sido flagrado por câmeras de segurança da região caminhando pelas ruas armado com uma AK-47. Era considerado um “puxador de guerra” na facção.

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Quando morreu, fazia pouco mais de dois meses que O GLOBO acompanhava diariamente Mateus e nove de seus amigos nas redes sociais. Em pouco mais de um ano, seis desses garotos faleceram, seja em conflitos com a polícia ou nas mãos de rivais. Nas postagens, havia referências ainda a um 11º jovem, morto em 2023, trocando tiros com agentes ao tentar roubar um carro.

Além da faixa etária e de pertencerem ao tráfico, eles tinham em comum a ligação com o Complexo da Penha, conjunto de favelas da Zona Norte fundamental para o Comando Vermelho: é abrigo de traficantes de outros estados e QG de onde partem decisões da organização. Ao menos 117 suspeitos foram mortos lá em 28 de outubro, em uma megaoperação de enfrentamento à facção. Um deles, inclusive, era desse grupo de garotos: André Luiz Ferreira Mendes Junior, o Cabeludo, de 22 anos.

Megaoperação nos complexos do Alemão e da Penha, na Zona Norte do Rio — Foto: Fabiano Rocha / Agência O Globo/28/10/2025

Apesar de ser uma tendência antiga, a entrada de pessoas cada vez mais jovens no tráfico de drogas tem sido proporcional ao investimento das facções na expansão territorial. A necessidade de mão de obra é alta e, por isso, a competência valorizada é a disposição para o risco — frequente entre os adolescentes. Nesse grupo acompanhado pelas redes, a maioria ingressou no tráfico entre 13 e 15 anos, já ocupando funções nas bocas de fumo e cometendo crimes fora da Penha. Hoje, só quatro continuam vivos, como mostra a primeira reportagem da série “Juventude perdida”, que se debruça sobre a vida de quem entra ainda criança ou adolescente para as fileiras do crime organizado no Rio.

Uma das formas de cooptá-los foi o dinheiro. Segundo o promotor Afonso Henrique Reis, coordenador da Área Infracional do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça da Infância e Juventude, por até 12 horas, dependendo da atividade e da comunidade, o tráfico paga de R$ 150 a R$ 300 por dia — valor próximo ao que recebe uma diarista na limpeza de um apartamento de classe média, mas irrisório para tanto risco.

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Após as mortes, os perfis dos garotos se tornaram espaços para homenagens de parentes e amigos. As publicações de lamento se somaram às de ostentação no crime, nas quais fotos e vídeos mostravam os jovens armados, com roupas camufladas, cometendo crimes, usando drogas, enfeitados com joias e curtindo bailes na comunidade.

Os integrantes do grupo tinham funções específicas em duas equipes centrais no tráfico: a do Ódio e a do Caos. Segundo a Polícia Civil, a primeira é responsável por furtos, roubos e latrocínios, enquanto a segunda é voltada para a invasão de territórios rivais. Pode acontecer de um mesmo adolescente integrar ambas, como Mateus, que cometeu atos infracionais de furto, roubo, associação para o tráfico e tráfico de drogas, inclusive em cidades da Região dos Lagos e da Costa Verde.

Num desses crimes, o rapaz foi apreendido por policiais do 41º BPM (Irajá), na companhia de outras quatro pessoas — entre elas, seu pai. O caso aconteceu em março de 2023, em Vicente de Carvalho, na Zona Norte. Todos estavam em um carro, retornando de um confronto com rivais na comunidade do Campinho, próximo à Praça Seca. Os agentes recolheram três fuzis, munições, três explosivos, um colete balístico e um cinto tático.

Em conversa com os PMs, o pai de Mateus chegou a dizer que era motorista de aplicativo e que havia sido abordado “pelos indivíduos”, sem apontar o parentesco com o adolescente. Somente na delegacia descobriu-se a paternidade e, em depoimento oficial, ele afirmou que o garoto tinha ligado para ele pedindo um “bonde” do Campinho para o Morro da Fé, no Complexo da Penha. Ele alegou que tinha sido coagido pelo filho e que não conhecia os demais envolvidos. Essa parte foi desmentida por um dos presos.

Complexo da Penha — Foto: Márcia Foletto
Complexo da Penha — Foto: Márcia Foletto

Mateus já estava bem diferente daquela criança da fotografia. Usava cabelos longos, na altura dos ombros, e cavanhaque. Frequentou escolas municipais até o 8º ano e, ao que tudo indica, deixou as aulas em 2022 — O GLOBO não teve confirmação de outras redes sobre o ingresso do adolescente. A propósito, o abandono escolar é outro ponto comum aos amigos da Penha: nenhum completou o ensino fundamental.

— Esses adolescentes não falam sobre sonhos, não demonstram ambição, parece que estão mortos por dentro. São jovens que nunca vão descobrir as próprias potencialidades porque, no Brasil, não há oportunidades, ainda mais nesses casos. Acaba que eles priorizam prosperar rápido pelo tráfico, e a entrada deles no crime é influenciada por disfuncionalidades e políticas públicas insuficientes, principalmente em relação à educação. No caso das evasões, se houvesse busca ativa efetiva, uma atenção voltada para eles, muitos não teriam esse fim — reforça o promotor Afonso Henrique Reis.

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O mais novo do grupo morreu no início de outubro, durante uma operação na Gardênia Azul, na Zona Sudoeste. Ele tinha 15 anos e realizava, em nome do tráfico, o roubo de cargas e a segurança de chefes. Aos 13, já aparecia em fotos portando armas e usando colete equipado com explosivos. A família dele vive em extrema vulnerabilidade na Vila Cruzeiro, na Penha, dependendo de doações e cestas básicas.

Na ação na Gardênia, em outubro passado, morreu também outro rapaz do grupo, um dia antes de completar 22 anos. Ele não respondia por crimes, mas, nas redes, ostentava fotos com fuzil e consumindo drogas.

Dados do Instituto de Segurança Pública (ISP) mostram que, de 2022 a junho de 2025, 169 adolescentes com até 17 anos morreram em confronto com a polícia. Nesse mesmo período, levando em consideração a faixa etária dos rapazes da Penha (de 15 a 22 anos), houve 816 mortes no estado.

‘O tráfico é sedutor’

Roberta Fernandes, pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, explica que o tráfico, atento às vulnerabilidades familiares e socioeconômicas de jovens, usa isso para atraí-los ao crime:

— O tráfico é sedutor. Não exige qualificação, conhecimentos elaborados. Para um garoto que cresce em comunidade, onde as perspectivas são limitadas, e não tem referências positivas de sucesso, acaba se tornando uma alternativa fácil. O tráfico sabe do contexto das crianças e dos adolescentes mais vulneráveis. Por estarem ocupando o mesmo território, existe a possibilidade de acompanhar o crescimento, a marginalização e a revolta deles. No caso do Comando Vermelho, a rebeldia acaba sendo ainda mais inflamada e isso, somado à violência do estado contra essa população, ajuda a mantê-los na facção.

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Vanessa Cavalieri, juíza titular da Vara da Infância e Juventude do Rio, reforça a importância do investimento em políticas públicas que valorizem a mão de obra da juventude.

— Muitas vezes os pais são pessoas que vivem da informalidade, em funções que não despertam interesse dos adolescentes. Eles precisam de ser expostos a outras possibilidades. É hipócrita a gente criticar esses garotos, desconsiderando as limitações de caminhos que eles têm. Quantos adolescentes pobres, que moram em comunidades, foram contratados este ano? — questiona ela.

‘Quem é o meu herói?’

Luis (nome fictício) entrou para o Comando Vermelho na década de 80, quando tinha 13 anos. A motivação, segundo ele, foi uma revolta acumulada em relação à polícia, que desrespeitava moradores da comunidade onde vivia, incluindo sua família. À época, ganhou destaque no tráfico e chegou à posição de chefe. No início dos anos 2000, no entanto, ele foi preso e, posteriormente, condenado a quase 50 anos de prisão. Atualmente, ele cumpre parte da pena em casa, com uso de tornozeleira eletrônica e, em entrevista ao GLOBO, afirma se dedicar a uma vida longe do crime. Leia o relato na íntegra:

“Minha infância foi boa. Brincava e estudava como qualquer criança. Meus pais eram presentes, meus irmãos também. Mas a gente morava em comunidade. Tivemos que ir para uma, na verdade, porque o lugar anterior passou uma remoção. Nesse novo endereço, a memória viva que tenho me remete às vezes que os policiais entravam, já com pé na porta, revirando tudo que, custosamente, era conquistado pelas pessoas. A gente aguardava na rua, enquanto tudo era mexido.

Eu cresci vendo o policial como essa figura ruim, destruidora, que xingava a minha família, chamava as mulheres que eu conhecia de piranhas. Em contrapartida, os traficantes apareciam como mocinhos: conheciam todo mundo, chamavam pelo nome, tratavam bem, davam doce, dinheiro. Você olha para eles e enxerga uma roupa maneira, uma namorada bonita, uma arma interessante, enquanto você mesmo tá usando a roupa que sobrou do seu irmão mais velho.

Meus pais sempre trabalharam muito e, em dado momento, ao invés de ir para a escola, como combinado, eu ficava pela rua, meus irmãos também arranjavam coisa para fazer. E, assim, as crianças aprendem o que na favela? Ainda mais naquela época. A gente sabia certinho a hora que meus pais voltavam, então, a gente corria muito para chegar antes. Eu já fazia muita coisa escondido, coloquei na minha cabeça que eu ia proteger a favela e, para isso, a polícia não podia entrar. Entrei para o tráfico.

Na adolescência, a gente se questiona “Quem é o meu herói?”. O certo seria a admiração ser em relação aos policiais, mas isso não acontece. O bandido, então, acaba sendo romantizado.

Eu cheguei a ter cinco carros na garagem, era tanto dinheiro que eu não sabia o que fazer, mas eu não era feliz. Minha vida se resumia a resolver problema do tráfico, incluindo de outras favelas. Quando eu fui preso, entrei numa reflexão que era: eu sempre fui revoltado contra o estado, era maltratado lá fora e, agora estou sendo aqui dentro, e dei uma data para a minha família ser maltratada, que era o dia da visitação. Simultaneamente, fui entendendo, num longo processo, que eu também era causador dos problemas da favela, a mesma que eu queria proteger. Chega uma hora que você precisa decidir o que quer fazer e, dado a tudo o que eu já tinha passado, entendi que não queria mais fazer parte disso. Sai tranquilo, de cabeça erguida, ainda to pagando a condenação, mas o crime não faz parte de quem eu sou. Aquele Luis ficou no passado.”



Conteúdo Original

2025-12-07 04:30:00

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