polícia fala em ‘narcocultura’ após prisão de funkeiro, enquanto pesquisadoras veem discriminação do funk

O cantor e compositor de funk Marlon Brendon Coelho Couto da Silva, de 26 anos, o MC Poze do Rodo, foi preso na quinta-feira (29) numa ação da Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE), da Polícia Civil. O funkeiro foi


O cantor e compositor de funk Marlon Brendon Coelho Couto da Silva, de 26 anos, o MC Poze do Rodo, foi preso na quinta-feira (29) numa ação da Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE), da Polícia Civil. O funkeiro foi preso pela manhã, em casa, num condomínio de luxo no Recreio dos Bandeirantes, na Zona Oeste do Rio. Levado para a Cidade da Polícia, no Jacarezinho, Zona Norte, chegou ao local algemado, sem camisa e descalço, conduzido de cabeça baixa por dois policiais. Ele é investigado por tráfico de drogas, associação para o tráfico e apologia ao crime. Ontem mesmo, no fim do dia, Poze passou por audiência de custódia, e a Justiça manteve sua prisão temporária por 30 dias.

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Para o secretário de Polícia Civil, delegado Felipe Curi, as letras e shows do funkeiro exaltam o Comando Vermelho (CV) e disseminam o que a polícia definiu como “narcocultura”.

— Ele transformou a música num instrumento de dominação, divulgação e disseminação da ideologia e da narcocultura da facção criminosa Comando Vermelho — disse Curi durante entrevista coletiva, repetindo o termo usado no vídeo divulgado pela força policial. — As letras são instrumentos de propaganda dessa organização criminosa, enaltecendo o uso de armas de grosso calibre, o uso de drogas, narrativas antipolícia, e também fomentam a prática de guerras e disputas territoriais com facções criminosas rivais.

De acordo com as investigações, Poze realiza shows exclusivamente em áreas dominadas pelo CV. Nessas apresentações, cita a polícia, há a presença ostensiva de traficantes armados com armas de grosso calibre, como fuzis, garantindo a “segurança” do artista e do evento.

Um dos casos citados pela polícia é de um baile funk na Cidade de Deus, realizado dois dias antes da morte, na semana passada, do policial José Antônio Lourenço, da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core), durante uma operação na favela. Segundo a DRE, a festa teria movimentado cerca de R$ 600 mil.

— Na véspera da morte de um policial, ele estava fazendo um show de apologia à facção criminosa na Cidade de Deus, com dezenas de fuzis para o alto. Uma grande afronta à sociedade e, principalmente, aos moradores de bem que são oprimidos por criminosos. Esse é o papel dele na facção — afirmou o delegado Carlos Oliveira, subsecretário de Polícia Civil.

De acordo com a polícia, o Comando Vermelho tem usado MCs e influenciadores digitais como ferramentas para difundir sua ideologia, enaltecer o tráfico e movimentar recursos obtidos com atividades criminosas. A operação de ontem também mirou uma gravadora e empresários do setor musical. O objetivo dos investigadores é esclarecer até que ponto essas empresas atuam como produtoras legítimas ou se operam como braços financeiros do tráfico.

— A investigação identificou que a facção utiliza os lucros desses bailes para financiar a compra de armamento, a construção de barricadas e outras estruturas criminosas. Há também suspeitas de crimes como lavagem de dinheiro e promoção de jogos ilegais, como as chamadas “casas de apostas” e “jogos de tigrinho” — disse o delegado Moyses Santana, titular da DRE.

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Entre os nomes mencionados na investigação estão os de outros artistas do cenário do funk, como Oruam, Cabelinho e Orochi — este último, sócio da gravadora Mainstreet. A empresa também é investigada pela polícia.

Durante o cumprimento dos mandados, foram apreendidos celulares, computadores, joias com símbolos da facção e uma BMW, levado por conta de uma alteração de cor não informada no documento do veículo. A mulher de MC Poze, Vivi Noronha, foi à Cidade da Polícia acompanhada de seguranças, mas não deu declarações à imprensa. Ela não foi alvo da operação.

MC Poze do Rodo é levado da Cidade da Polícia após ser preso durante operação da DRE — Foto: Gabriel de Paiva / Agência O Globo

O advogado Fernando Henrique Cardoso Neves, que se apresentou como defensor de MC Poze do Rodo, da Mainstreet e dos demais artistas citados afirmou que a gravadora não é citada diretamente na decisão que fundamentou a prisão do funkeiro, disse que a defesa teve acesso recente e limitado aos autos e só poderá se manifestar de forma mais precisa quando tiver conhecimento integral da investigação.

— A investigação ainda é sigilosa, nós ainda tomaremos ciência de tudo para poder emitir qualquer opinião. Até então eu desconheço essa questão — disse Fernando Henrique que refutou a possibilidade de que seu cliente fizesse apologia ao tráfico uma vez que as músicas são “peças de ficção”.

O cantor Oruam, de 23 anos, saiu em defesa do MC Poze do Rodo em um vídeo postado em rede social: “O estado gosta de envergonhar nós. Algemaram o Poze e nem precisa disso. O cara é exemplo para várias pessoas. Todo mundo sabe que isso aí é uma mentira. Ele é cantor. Ele canta em baile de favela, mas não é envolvido com facção nenhuma, não. Isso é a maior covardia. Eles gostam de envergonhar nós”.

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MC Cabelinho se pronunciou em rede social: “Desde sempre a cultura preta, favelada periférica é criminalizada e ultimamente e isso está se intensificando (…) quando um roteirista escreve a vida de um traficante e relata o que acontece na favela, é arte, agora quando um MC, funkeiro, favelado, relata a realidade (…) é apologia ao crime”.

Orochi também gravou um vídeo no qual se pronuncia, representando a Mainstreet Records: “Não existe lavagem de dinheiro do crime, não existe associação ao crime na Mainstreet (…) Liberdade Poze do Rodo e obrigado a todos os artistas que se posicionaram. Tem vários bandidos engravatados que deveriam ser tratado dessa forma (como Poze foi conduzido pela Polícia) e não são”, disse em seu perfil no Instagram.

Em novembro do ano passado, Poze foi alvo de busca e apreensão em operação sobre sorteios em redes sociais. No mês passado a Justiça determinou que seus bens fossem devolvidos, entre eles grossos cordões de ouro. Ele se apressou a gravar vídeos ostentando as pesadas joias em casa. Em entrevista ao Profissão Repórter, da TV Globo, Poze do Rodo — que ganhou o apelido por ter crescido na favela homônima, em Santa Cruz, na Zona Oeste — chega a dizer que cantava músicas “erradas”, mas se corrige em seguida: “Não é que era errado, eu cantava o que eu vivia”.

MC Poze do Rodo posa com cordões de ouro — Foto: Reprodução/Instagram
MC Poze do Rodo posa com cordões de ouro — Foto: Reprodução/Instagram

Pelo menos desde a década de 1990, quando os arrastões levaram medo às praias do Rio, o funk, nascido nas favelas da cidade — e que se tornou produto de exportação da música brasileira — é associado a práticas criminosas.

— As letras não podem ser tratadas como documentos. No máximo, poderiam ser analisadas como documentários, mas ainda assim isso seria questionável. O que esses jovens fazem é uma elaboração simbólica da vida cotidiana. Eles falam da realidade, mas isso não significa que estejam praticando crimes O chamado “proibidão” é parte dessa tradição. E veja: o funk ostentação, mais aceito socialmente, é basicamente o proibidão higienizado sem as armas, mas com a exaltação do dinheiro, das joias, das mulheres. E isso também está presente no rap norte-americano— reflete a antropóloga Mylene Mizrahi, professora da PUC-Rio.

A escritora Michele Miranda, autora de “Funk Delas – A história contada pelas mulheres”, lembra que não é de hoje que se tenta associar o funk ao crime:

— Nos anos 1990, já relacionavam os arrastões nas praias da Zona Sul do Rio de Janeiro ao funk. Foi a primeira vez que precisamos defender a cultura do funk e mostrar que o funk estava cantando o que acontece na favela. Para mudar o conteúdo das letras, é preciso mudar a realidade da favela.



Conteúdo Original

2025-05-30 06:30:00

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