O Brasil é um microcosmo dos problemas que o crime organizado e os mercados ilícitos colocam em todo o mundo. A afirmação é de Mark Shaw, diretor da Iniciativa Global Contra o Crime Organizado Transnacional (GI-TOC), uma organização independente da sociedade civil, com sede em Genebra, na Suíça, que pretende promover o debate e apontar caminhos para uma estratégia contra o crime organizado.
Um dos principais especialistas globais nesses temas, Shaw afirma que o país tem uma combinação problemática: concentra altas taxas de criminalidade, é corredor de escoamento de ilícitos, além de grande consumidor interno de cocaína, e ainda tem baixa resiliência para enfrentar o crime.
Tudo isso colocou o Brasil na 22ª posição do Índice Global de Crime Organizado, uma ferramenta da organização dirigida por Shaw que avalia o nível de criminalidade e a capacidade de resistência ao crime organizado em 192 países. Publicado a cada dois anos, o último índice é de 2023 e deve ser atualizado até novembro.
Shaw foi um dos palestrantes do seminário ‘Crime Organizado e mercados ilícitos no Brasil e na América Latina: construindo uma agenda de ação’, promovido pela Cátedra Oswaldo Aranha da Escola de Segurança Multidimensional (ESEM), da Universidade de São Paulo (USP).
O senhor mencionou que o Brasil é um microcosmo dos desafios do crime organizado em todo o mundo. O que isso significa?
O Brasil é muito representativo. É um país de média renda em que, a níveis superficiais, você imaginaria que teria recursos e meios institucionais para lidar com a questão do crime organizado de uma maneira relativamente eficiente. A gente sabe que não é o caso. As questões de criminalidade impedem isso de acontecer. Nosso índice global mede os 15 principais mercados ilícitos a nível global. E o Brasil tem pontuações altas para quase todos esses 15 mercados. Para cocaína, tem uma pontuação de nove. Para mineração, oito. O Brasil é um país enorme que serve tanto como corredor para escoamento de mercadores ilícitos quanto como um mercado interno, também de muitos mercados ilícitos, como cocaína, recursos ambientais, drogas sintéticas, extorsão, tráfico humano. Além disso, tem vários atores criminais diferentes, não só facções, como setor privado, alguns atores estrangeiros, como a Ndrangheta, os grupos dos Balcãs…. Somado a isso, o Brasil ainda tem baixos níveis de resiliência para o crime organizado. E o que significa resiliência? É a capacidade do Estado e da sociedade para responder às máfias.
Na sua opinião, o Brasil é um país com alta taxa de infiltração estatal no crime organizado em comparação com outras nações?
A nível global, o Brasil realmente está bem acima da média em termos da escala do envolvimento de agências estatais no crime organizado. A pontuação no nosso índice do Brasil é de 8.5. Então o Brasil está em 21º lugar no ranking mundial de 192 países. Tem países em que essa questão é extremamente dramática: Coreia do Norte, Síria, Irã – esses eram os grandes países no nosso índice de 2023. Ali há essa questão da geocriminalidade, de ser política de Estado incubar e lançar grupos ilícitos. Isso não é o que a gente vê aqui. O que a gente identifica muito aqui é a questão dos interesses se infiltrando principalmente nas agências policiais. O maior exemplo é o das milícias do Rio. Esses grupos milicianos foram criados e hoje em dia ainda são liderados por agentes policiais, dominam áreas com mais de 2 milhões de pessoas. Se a gente pensar no impacto disso, é um negócio extremamente preocupante. Mas o que a gente mede é essa questão de quando o crime organizado consegue se infiltrar nas concessões públicas, como a gente vê com o PCC no sistema de transporte aqui em São Paulo. Então, nesse nível global, acho que o Brasil realmente tem exemplos muito sérios, muito graves e que impactam o dia a dia de milhões de pessoas.
O PCC e outras organizações criminosas no Brasil nascem e se espalham nas prisões. Como podemos evitar que as prisões brasileiras continuem sendo incubadoras do crime organizado?
A questão chave é achar novos paradigmas para a segurança pública. Em um contexto como o Brasil, em que a gente já tem prisões, encarceramento em massa, prisões extremamente precárias, com superlotação, não faz sentido a gente continuar a adotar essas práticas de prender qualquer usuário, de prender em massa e de achar que a resposta realmente é o encarceramento. Primeiro precisamos reconhecer esse problema. Esse discurso de as prisões serem universidades do crime ainda precisa entrar no debate público. A gente precisa reconhecer que as nossas políticas públicas muitas vezes estão beneficiando diretamente o crime organizado, principalmente o PCC e Comando Vermelho nas prisões. É preciso criar instituições mais sólidas, com bons salários e profissionais honestos. E de não achar que defender o direito de quem está preso é defender o crime.
O senhor mencionou que a mineração ilegal de ouro no Brasil teve uma expansão drástica, com grupos criminosos aceitando ouro como pagamento por drogas, tornando-o uma mercadoria lucrativa. Quais são os desafios no combate a esse crime ambiental?
A questão principal é o incentivo que vem do preço internacional do ouro nesse momento. O grama do ouro está mais de 3 mil dólares. Desde a pandemia, o preço do ouro está aumentando dramaticamente. E, desde o começo desse ano, está atingindo níveis recordes. Então o primeiro desafio é o fato de que vai continuar a ter um incentivo de lucro muito grande nesse mercado ilícito. As redes de traficantes, principalmente na Amazônia, que se especializaram em drogas, estão agora só priorizando o translado e a comercialização do ouro. Essa é a nova fronteira da criminalidade aqui na região. E outro desafio é a questão transfronteiriça. Se você olhar a Amazônia e o Escudo de Guiana, ali tem vários lugares em que você pode criar garimpos extremamente lucrativos. São locais extremamente isolados, com pouca presença policial, pouca capacidade institucional para investigar os fluxos financeiros por trás desses grupos. Muitas vezes, os próprios garimpeiros nem sabem em qual país estão. As intervenções diretas e operacionais de polícia podem desbaratar os garimpos em uma localidade específica, mas não vai desfazer o fenômeno.
O governo dos EUA recentemente classificou grupos criminosos como o Trem de Aragua como organizações terroristas. Quais são os potenciais riscos e benefícios dessa medida?
O benefício é fortalecer o operacional, é fortalecer as polícias a ter um arcabouço legal maior. Além de mais recursos, orçamentos maiores para combater grupos criminosos que também podem ser designados como terroristas. O risco é que há várias áreas cinzentas. O crime organizado está tão inserido no mercado formal e na nossa sociabilidade do dia a dia que essa questão que o decreto americano traz, de que qualquer pessoa que esteja se beneficiando materialmente pode também ser pega dentro dessa lei, isso cria um ambiente muito abrangente de quem está associado a esses grupos e de quem está beneficiando esses grupos. A gente sabe que, na prática, quem está tendo que pagar extorsão, quem está sofrendo nas mãos do crime organizado, em termos legais, pela ação normativa, pode estar sendo considerado como alguém que está sendo beneficiado pelo crime organizado.
Qual é a diferença conceitual entre grupos criminosos e terroristas?
Em termos gerais e talvez abstratos, grupos terroristas têm questões ideológicas, religiosas e políticas por trás. O crime organizado não se encaixa nisso. O entendimento histórico, tanto acadêmico quanto em nível de política pública do crime organizado, era justamente pensar nesses grupos quase como firmas, como empresas que operam no ramo ilegal. E essa diferença conceitual, na prática, também é um pouco difícil dela seguir. Porque muitas vezes o crime organizado aqui no Brasil e em várias regiões do mundo opera politicamente. Talvez não tenha ideologias estabelecidas como grupos terroristas. Mas acho que é justamente nessa ambiguidade conceitual que esse movimento de tentar combinar essas duas coisas de crime organizado e terrorismo está cada vez mais na moda. E é essa tendência a nível global que a gente está identificando. Precisamos tomar cuidado para não achar que isso vai ser a solução para tudo. Mas reconhecendo que talvez aí tenha uma oportunidade de debater e de encontrar novos meios de fortalecer as respostas policiais contra o crime organizado.
Classificar grupos criminosos como o PCC como terroristas não afetaria a soberania brasileira?
A mesma dificuldade se aplica ao Brasil. A questão de soberania… Teve uma conversa, o governo americano tentou influenciar o governo brasileiro a classificar o PCC como organização terrorista. Isso não aconteceu por enquanto. E agora tem esse projeto de lei que está debatendo essa questão aqui no Brasil, que também aborda os mesmos benefícios e os mesmos riscos. Mas aqui tem a questão do encarceramento em massa. Leis que vão criar oportunidades de ter mais gente dentro de presídios por períodos mais longos, isso só vai beneficiar grupos criminosos. Então, no contexto brasileiro, a gente tem que pensar muito bem em como esses esforços de tentar entender o crime organizado como terrorismo pode afetar os nossos presídios e potencialmente, a longo termo, beneficiar essas grandes facções.
2025-06-25 10:03:00