O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, admitiu que o país está armando uma milícia palestina contrária ao Hamas e acusada de saquear ajuda humanitária na Faixa de Gaza. A informação, revelada inicialmente pela imprensa internacional, foi confirmada nesta sexta-feira por Netanyahu em um vídeo publicado nas redes sociais. Segundo o premier, o apoio ao grupo é uma forma de ajudar os soldados israelenses, e a revelação da história pela mídia apenas “ajuda o Hamas”.
— Qual o problema disso? Salva vidas de soldados israelenses — disse Netanyahu no vídeo, publicado em sua conta oficial no X (antigo Twitter).
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A milícia é liderada por Yasser Abu Shabab, um palestino beduíno — povo nômade que habita as regiões desérticas do Oriente Médio e do Norte da África — de cerca de 34 anos. O grupo tem atuado no leste de Rafah, no sul da Faixa de Gaza, próximo à fronteira com Israel e com o Egito.
Segundo o jornal americano Wall Street Journal (WSJ), o grupo — que se autodenomina “Força Popular” — já circula armado pelas ruas da região, portando fuzis M16 e Kalashnikov, armas supostamente fornecidas pelas Forças de Defesa de Israel (IDF) e confiscadas de combatentes do Hamas.
Apesar disso, Abu Shabab nega que tenha recebido armas de Israel.
— Nossas armas são simples, primitivas e vieram do apoio do nosso próprio povo — afirmou em um vídeo nas redes. — Somos beduínos, e em toda casa beduína, especialmente nas áreas orientais, há armas.
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A declaração contrasta com o que foi relatado por autoridades de defesa israelenses ao Wall Street Journal e pela oposição do país. O deputado Avigdor Lieberman, líder do partido Yisrael Beiteinu, afirmou em entrevista à emissora pública Kan que Netanyahu aprovou, sem passar pelo gabinete de segurança, o envio de armas ao grupo.
— O governo está entregando armamento a um bando de criminosos, associados ao Estado Islâmico — denunciou.
Fontes de defesa israelenses confirmaram à imprensa local que os armamentos incluem rifles Kalashnikov, parte deles capturados de combatentes do Hamas. O grupo de Abu Shabab atua em uma área sob controle militar direto de Israel, em Rafah.
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Yasser Abu Shabab ganhou notoriedade durante a guerra ao assumir o controle de parte do bairro de Shouka, em Rafah. O Wall Street Journal relata que ele já havia sido acusado de saquear ajuda humanitária em caminhões que chegavam a Gaza. Em entrevista ao New York Times em novembro de 2024, Abu Shabab admitiu ter “assumido” a distribuição de mantimentos para famílias da região.
— Estamos tomando os caminhões para podermos comer, não para podermos vender — disse ele, afirmando que estava alimentando sua família e seus vizinhos e acusando o Hamas de ser o principal responsável pelo saque. — Toda pessoa faminta está recebendo ajuda.
Segundo motoristas de caminhão e donos de transportadoras locais ouvidos pelo Times, o grupo de Abu Shabab opera um esquema organizado de interceptação de cargas. Caminhões com sacos de farinha e outros insumos foram desviados por homens armados que se identificavam como ligados ao clã.
O clã de Abu Shabab já travou confrontos mortais com o Hamas. Em novembro passado, forças do grupo islâmico atacaram o reduto do miliciano em Khan Younis, matando 20 pessoas, incluindo seu irmão. Abu Shabab acusou o Hamas de “matar todos que viram pela frente”. Em maio deste ano, o Hamas divulgou um vídeo de uma nova tentativa de assassinato contra Abu Shabab, chamando-o de “espião de Israel”.
Mesmo assim, a Força Popular afirma estar crescendo. Em vídeo divulgado em maio em sua página no Facebook, a milícia mostrou combatentes mascarados, com coletes táticos, parando comboios da ONU e da Cruz Vermelha. As imagens exibem uniformes com bandeiras palestinas semelhantes às usadas pelas forças de segurança da Autoridade Palestina na Cisjordânia.
Abu Shabab afirma que atua para manter os civis em Rafah longe dos confrontos. Em entrevista ao WSJ nesta quinta-feira, ele disse que 20 novas famílias haviam se juntado ao seu território, onde recebem abrigo, alimentos e remédios. Segundo ele, seu objetivo é evitar que as pessoas sob sua proteção sejam deslocadas.
— Nosso plano é viver com dignidade. Não é surpresa nos chamarem de colaboradores, mas somos apenas um povo firme que escolheu ficar — declarou ao jornal americano.
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O líder da milícia afirma que atua sob “legitimidade palestina”, uma expressão comumente usada para se referir à Autoridade Nacional Palestina (ANP), que governa parte da Cisjordânia ocupada.
Ao New York Times, o general Anwar Rajab, porta-voz das forças de segurança da Autoridade Palestina, disse que irá se pronunciar “em breve”, reconhecendo que a situação é “complexa e envolve fatores de segurança, política e, sobretudo, humanitários”.
A revelação do apoio israelense à milícia gerou forte reação política. Yair Golan, líder do partido centrista Democratas, publicou no X que Netanyahu está colocando o país em risco. “Em vez de buscar um acordo para trazer os reféns de volta e garantir segurança à população, ele está criando uma nova bomba-relógio em Gaza.”
O especialista em movimentos islâmicos Hasan Abu Hanieh, baseado na Jordânia, avaliou ao Wall Street Journal que a estratégia é frágil.
— Israel tenta criar uma força local paralela e leal. Mas, para ter aceitação, ela precisaria de legitimidade, o que Abu Shabab claramente não tem — afirmou.
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Em entrevista ao WSJ, Michael Milstein, ex-chefe de assuntos palestinos da inteligência militar israelense, foi ainda mais direto:
— Tenho certeza de que o Hamas vai esmagá-los. As chances de esse pequeno emirado dar certo são muito baixas.
A opção por armar milícias locais reflete o impasse de Israel sobre o futuro político da Faixa de Gaza. Para o general aposentado Shlomo Brom, ex-estrategista das Forças Armadas israelenses, Netanyahu rejeita tanto uma ocupação completa da faixa quanto o retorno da Autoridade Palestina.
— Se pensarmos em quem realmente pode ser uma alternativa ao Hamas em Gaza, temos duas opções: uma administração militar israelense ou a Autoridade Palestina — afirmou ao New York Times, destacando que ambas as opções são politicamente custosas. — Eles [israelenses] estão apostando em uma solução duvidosa.
2025-06-06 16:40:00