Após a descoberta da tumba do faraó Tutancâmon em 1922, o arqueólogo britânico Howard Carter passou anos catalogando os milhares de artefatos inestimáveis encontrados no interior da câmara funerária — entre eles, estátuas em tamanho real do jovem faraó, tronos dourados e a icônica máscara mortuária. Mas Carter também teria levado alguns objetos para si, de forma não autorizada.
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Agora, um desses artefatos, apontado há décadas por egiptólogos como tendo sido furtado por Carter, será colocado à venda, reacendendo discussões sobre a origem do item e a ética da sua comercialização.
Trata-se do chamado Gafanhoto de Guennol, um pequeno recipiente de marfim e madeira esculpido com detalhes intrincados. O objeto tem o formato do inseto, com asas que se abrem para revelar um compartimento onde se armazenava perfume.
O artefato será leiloado neste domingo (27) pela Apollo Art Auctions, uma pequena casa de leilões de Londres. Avaliado em até 500 mil libras (cerca de US$ 675 mil), o item já teria sido negociado anteriormente por US$ 1,2 milhão.
A casa de leilões afirma que não há evidência documental de que o recipiente tenha vindo da tumba de Tutancâmon. “O item não consta em nenhum inventário oficial da escavação”, afirmou a Apollo em comunicado por e-mail.
Apesar disso, especialistas em arqueologia egípcia dizem não ter dúvidas sobre a procedência do objeto. Para Christian Loeben, do Museu August Kestner, em Hanover, na Alemanha, o gafanhoto tem características do mesmo período do reinado de Tutancâmon, no século XIV a.C., e o bom estado de conservação sugere que o item veio de uma câmara selada, como a do jovem faraó.
Registros históricos indicam que Carter vendeu o artefato ao retornar à Inglaterra. “É uma questão moral”, afirmou Loeben, defendendo que o objeto seja devolvido ao Egito.
Christina Riggs, professora da Universidade de Durham, no Reino Unido, que estuda a trajetória de Carter, explicou que o arqueólogo retirou diversos pequenos itens da tumba — muitos com formas de animais —, e que alguns ainda permanecem em coleções de museus ocidentais. Segundo ela, não é surpreendente que o gafanhoto não apareça nos registros: “Carter obviamente não listou os itens que levou ilegalmente.”
Riggs também criticou a casa de leilões por não ter consultado o governo egípcio. O Ministério do Turismo e Antiguidades do Egito e o governo do país não responderam aos pedidos de comentário para esta reportagem.
Em sua defesa, a Apollo Art Auctions declarou estar “confiante de que a venda está em conformidade com todas as leis e padrões internacionais”, afirmando ainda que tomou medidas legais e éticas para garantir a legitimidade da procedência. A casa também informou que o Art Loss Register, banco de dados britânico de artefatos roubados, emitiu um “certificado de liberação”, indicando que o objeto não consta como perdido ou furtado.
James Ratcliffe, conselheiro-geral do registro, afirmou que o objeto está “em uma zona cinzenta”: embora existam dúvidas sobre sua origem, o governo egípcio nunca solicitou sua devolução.
A discussão sobre o direito de propriedade remonta ao início da escavação. Em 1914, quando Carter e seu patrono, o conde de Carnarvon, iniciaram as buscas, a regra egípcia previa que arqueólogos ficassem com metade dos achados, caso a tumba já tivesse sido violada por ladrões. Carter alegou que era o caso da tumba de Tutancâmon, mas sua avaliação foi contestada. O governo egípcio, por fim, decidiu manter todos os itens descobertos.
Logo após a descoberta, uma reportagem do The New York Times, de dezembro de 1922, relatava que o “trabalho incessante” de Carter não seria recompensado, pois a tumba seria considerada “real e intocada”.
Após a morte de Carter, em 1939, sua sobrinha encontrou, entre seus pertences, diversos objetos com inscrições do nome de Tutancâmon — alguns foram posteriormente devolvidos ao Egito. Em 2010, o Metropolitan Museum of Art, de Nova York, devolveu 19 peças que, segundo o museu, poderiam ser atribuídas com certeza à tumba do faraó.
Atualmente, mais de 5.000 artefatos do túmulo de Tutancâmon compõem o acervo do futuro Grande Museu Egípcio, nos arredores do Cairo — ainda não aberto ao público. A famosa máscara de ouro continua em exibição no antigo Museu Egípcio da capital.
Embora o Egito não tenha feito uma reivindicação formal sobre o Gafanhoto de Guennol — há décadas em mãos de colecionadores privados —, a ligação com a tumba é amplamente reconhecida. Em 1978, o ex-diretor do Metropolitan Museum, Thomas Hoving, publicou o livro Tutancâmon: A História Não Contada, no qual afirmava que o objeto “sempre esteve ligado aos tesouros de Tutancâmon”.
Erin Thompson, professora do John Jay College of Criminal Justice, em Nova York, especialista em crimes contra o patrimônio, afirmou não se surpreender com o fato de o leilão estar sendo feito por uma casa menor. “Christie’s e Sotheby’s não tocariam em uma antiguidade tão ligada a um ladrão conhecido”, declarou.
Para Thompson, o caso levanta questões mais amplas sobre a ética na comercialização de peças com possível origem ilícita. “Devemos devolver apenas os artefatos cuja história conseguimos comprovar passo a passo?”, questionou. “Ou devemos agir com base no que é certo, mesmo quando não é possível provar tudo?”
2025-07-27 03:30:00