Escalada autoritária da polícia migratória sob Trump desafia limites da lei nos EUA

Os vídeos viralizaram nas duas últimas semanas. Em um deles, agentes do Serviço de Imigração e Alfândega dos Estados Unidos (ICE) entram no Rayito de Sol, jardim de infância bilíngue de Chicago, para prender uma professora. Ela sai com os


Os vídeos viralizaram nas duas últimas semanas. Em um deles, agentes do Serviço de Imigração e Alfândega dos Estados Unidos (ICE) entram no Rayito de Sol, jardim de infância bilíngue de Chicago, para prender uma professora. Ela sai com os braços imobilizados e a cena se dá na frente de crianças, colegas, funcionários e pais. Um dia antes, em Los Angeles, oficiais prenderam, no estacionamento de uma loja da rede Home Depot, um cidadão americano de origem latina que retornava a seu carro. Sua filha, de 2 anos, permanecia no veículo. Um dos agentes, com colete à prova de balas e armado, levou-a embora. Da cadeirinha, ela observou tudo, olhos arregalados. Foi resgatada depois pela avó.

  • Vídeo: Agentes de imigração prendem homem durante operação em Los Angeles e levam filha pequena dele
  • Sonhos desfeitos: Leia série de matérias sobre imigrantes brasileiros que vivem nos EUA sob o governo Trump

Vereador do distrito onde fica o Rayito de Sol em Chicago, Matt Martin, do Partido Democrata, denunciou que não foi apresentado mandado para entrar na escola. E que a imigrante tinha visto de trabalho. O Departamento de Segurança Interna dos EUA (DHS, na sigla em inglês) informou, por sua vez, que ela fugia de uma batida do ICE, procurada por “tráfico de menores”. Era acusada de ajudar seus próprios filhos, de 16 e 17 anos, hoje em um abrigo público da cidade, a cruzar a fronteira ilegalmente.

Na última sexta-feira, a CNN reuniu dados públicos para mostrar que 3 mil pessoas foram detidas desde janeiro sob a mesma acusação, algo sem paralelo no país. Já no caso de Los Angeles, as autoridades argumentam que o vídeo não mostra a altercação anterior, em que o cidadão preso, armado, ameaçara os agentes.

Mesmo com a divergência de narrativas, os dois episódios intensificaram questionamentos sobre os métodos usados pela fiscalização migratória na segunda passagem de Donald Trump pela Casa Branca. Para cumprir sua promessa de campanha de deportação em massa de imigrantes sem documentos, em sua maioria de origem latino-americana, o ICE tem sido denunciado, inclusive na Justiça, por agir com truculência, acima de lei e sem qualquer responsabilização por erros.

  • Contexto: Governo Trump divulgou vídeos manipulados sobre protestos e operações anti-imigração, diz jornal

Com orçamento anual de US$ 10 bilhões (R$ 53 bilhões), acrescidos de US$ 7,5 bilhões (R$ 39,75 bilhões) emergenciais em 2026, o ICE iniciou uma ofensiva de contratações, com requisitos reduzidos de idade, treinamento e escolaridade. Oferece bônus de US$ 50 mil (cerca de R$ 266,5 mil) a novos recrutas.

Ao mesmo tempo, é comparado a polícias secretas de governos totalitários por grupos de defesa de direitos civis e advogados especializados que denunciaram ao GLOBO, de forma reservada, perseguição e cerceamento de seu trabalho. Na semana passada, a Conferência dos Bispos dos EUA divulgou documento oficial com rara crítica pública a Washington, em que afirma rezar pelo “fim da retórica desumanizadora e da violência”. Pouco mais de 40% dos latinos são católicos.

— Como os agentes quase sempre agem mascarados, não se pode sequer afirmar que são de fato do ICE. Assim, se dificulta a responsabilização e se estabelece uma perigosa aproximação com a ação de milícias e de vigilantes, com uso de táticas antes restritas às polícias de fronteiras — diz ao GLOBO César García Hernández, professor da Universidade Estadual de Ohio.

A agência de jornalismo independente ProPublica ouviu da advogada Michelle Brané, referência em direitos civis e ombudsman do DHS no governo Joe Biden, que o ICE se tornou, “com seu novo e nada sutil manual autoritário, a polícia secreta do atual governo, podendo mirar sua atenção no futuro nos demais cidadãos”.

  • ‘Dia Sem Reis’: Milhares vão às ruas nos EUA em atos contra Trump

A Casa Branca refuta as acusações e aponta a “demonização dos agentes”, que não têm suas identidades reveladas “por segurança”, intensificada após serem deslocados também para o combate ao crime urbano em várias cidades do país, o que ocorre, também de forma inédita, em Los Angeles e Chicago, comandadas por democratas e com larga população latina.

Mesmo na maior metrópole do país, que acaba de eleger um prefeito imigrante, as denúncias de abusos do ICE se multiplicam. Em agosto, o fotógrafo Mark Peterson publicou na revista New Yorker ensaio definitivo sobre a nova rotina nos tribunais do sul de Manhattan, localizados a poucas quadras da prefeitura onde Zohran Mamdani, do Partido Democrata, despachará a partir de janeiro.

Centenas de agentes, vários mascarados e armados, batem ponto nos corredores do Judiciário estadual, à espera de imigrantes, a fim de detê-los no momento em que terminam as audiências. É o caso do colombiano retratado pelo New York Times, cujas imagens são reproduzidas ao lado. Advogados e jornalistas testemunham as detenções, que “muitas vezes ocorrem com pouca consideração pelo devido processo legal”, segundo a revista New Yorker. Parentes, inclusive crianças, gritam e choram. Cartazes questionam “onde estão?”, com retratos de pessoas levadas para prisões federais antes de serem deportadas, nem sempre para seus países de origem.

  • Revés de Trump: Tribunal dos EUA confirma suspensão do envio da Guarda Nacional para Chicago

As imagens de Peterson, em preto e branco, com flash e sombras destacados, evocam propositadamente o cinema noir e o jornalismo policial dos anos 1930 e 1940. “Se alguém faz tudo certo, e mesmo assim é detido, é uma cena de crime”, diz o fotógrafo. “Tudo certo” é comparecer à corte.

Advogados especializados em Imigração com prática em localidades dos EUA onde brasileiros são numerosos afirmaram ao GLOBO penar para seguir fazendo o que aprenderam na faculdade: recomendar aos clientes irem aos tribunais, mesmo sabendo que poderão “cair em uma armadilha”. Eles contam que um número crescente deixou de comparecer às audiências, aumentando as chances de deportação. Mas preferem se esconder, “até o pior passar”, a enfrentar o perigo do ICE e a humilhação pública.

García Hernandez, da Universidade Estadual de Ohio, lembra do momento em que leu, no celular, em setembro, a decisão da Suprema Corte sobre os métodos de abordagem do ICE em Los Angeles. Agentes federais poderiam, sim, determinou a maioria conservadora, interrogar pessoas com base apenas em raça, etnia, uso de idioma ou sotaque.

A decisão que derrubou, de forma emergencial, a proibição imposta por uma juíza federal da Califórnia, não é definitiva. Quatro processos seguem na Justiça buscando limitar prisões sem mandado e abordagens no trânsito. Em entrevista ao 60 Minutes, da rede CBS, Trump foi questionado se os agentes do ICE não teriam ido “longe demais”, ao “imobilizar mães, usar gás lacrimogêneo em bairros residenciais e quebrar vidros de carros”. O presidente disse que “ao contrário, só não foram ainda mais longe por culpa dos juízes prgressistas, nomeados por Biden e Barack Obama”.

García Hernandez crê, por isso mesmo, como antídotos ao avanço autoritário, no Judiciário, no direito de protesto, e na voz soberana das urnas. A última, no início do mês, castigou Trump nos pleitos regionais. Inclusive em áreas de expressiva população latina, central para a coalizão vitoriosa do republicano ano passado e que será decisiva nas eleições do ano que vem, quando o Congresso estará em jogo. Pesquisas mostram insatisfação crescente do estrato com o governo e a multiplicação de eleitores arrependidos em meio ao clima de terror, com bolsos mais vazios, custo de vida em alta e depressão econômica onde vivem.

  • Entenda: Trump mira cidades com prefeitos negros ao testar intervenções com a Guarda Nacional

Mas o acadêmico também destaca a ampla deferência da Suprema Corte ao atual Executivo. Em sua manifestação na decisão sobre Los Angeles, o juiz Brett Kavanaugh, nomeado por Trump, justificou as ações do ICE como “senso comum”. A maioria dos que descumpriam a lei migratória, escreveu, falavam espanhol, trabalhavam e viviam em locais específicos, com características étnicas óbvias.

— Quando a decisão saiu, eu tomava um café na universidade e conversava em espanhol com outro acadêmico. Vestia uma guayabera, que comprara no México. O que me deixaria a salvo, a partir de então, em uma ação do ICE? Ser professor, estar em um espaço ocupado pela elite branca, falar inglês fluente? Não quero mudar quem sou, o modo como me visto ou deixar de falar mais de uma língua para evitar arbitrariedades. Não ser uma cultura homogênea faz os EUA mais fortes — diz o professor.



Conteúdo Original

2025-11-16 00:00:00

Posts Recentes

PUBLICIDADE

PUBLICIDADE