A Operação Rede Obscura, deflagrada nesta terça-feira pela Delegacia de Defesa dos Serviços Delegados (DDSD), revelou que duas empresas de internet, ainda que autorizadas pela Anatel, mantinham o monopólio em áreas da Zona Norte do Rio dominadas por facções criminosas — com apoio direto do tráfico.
- Fronteiras tecnológicas do tráfico: Operação mira exploração clandestina de serviço de internet por CV e TCP
- Tire dúvidas: É possível transferir o saldo do Riocard para o Jaé? Como não perder o dinheiro ao mudar de cartão?
Além de monopolizarem o serviço por meio da força, as empresas, afirma a DDSD, impediam que técnicos de operadoras regulares atuassem nas regiões onde presta serviço. Quando os funcionários conseguiam entrar, tinham equipamentos confiscados ou até furtados, para em seguida serem usados pelas empresas da região, revelou a investigação.
Segundo o delegado Pedro Brasil, titular da DDSD, a polícia tomou conhecimento da situação após receber denúncias da população por meio do Disque Denúncia e reclamações de operadora, como a a Claro e Vtal, que foram expulsas da região. Os criminosos, segundo ele, se apropriavam de cabos e da infraestrutura já instalada pelas operadoras legalizadas, e, com a proteção armada do tráfico, estabeleciam um domínio total da oferta de internet. Técnicos de outras empresas eram impedidos de circular nas comunidades.
Ao todo, foram cumpridos 17 mandados de busca e apreensão em endereços ligados aos alvos, tanto na Zona Norte quanto na Baixada Fluminense. A ação contou com o apoio de agentes do Departamento Geral de Polícia Especializada (DGPE), da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core) e da 38ª DP (Brás de Pina).
— Foi uma operação bastante exitosa. Conseguimos apreender um vasto material probatório. O objetivo é juntar e ampliar essa operação para desmembrar essa investigação para lavagem de dinheiro — explicou o delegado.
Flaquinet e RDO: investigação aponta conexões com o crime
Uma das empresas investigadas é a Flaquinet Serviços Ltda, que operava no Morro do Quitungo e, segundo a polícia, é ligada ao Comando Vermelho. O responsável, Rogério Nascimento, já possui antecedentes por tráfico de drogas, furto de energia e receptação. De acordo com a Polícia Civil, em depoimento, Rogério admitiu ter recebido propostas de outras facções para expandir os serviços a outras comunidades, além de afirmar que realizava repasses financeiros periódicos a chefes do tráfico.
A defesa de Rogério nega as acusações e contesta a versão da polícia.
— A Flaquinet é uma empresa estabelecida há mais de 30 anos, reconhecida por sua atuação sólida e regular em diversos municípios do Rio. Em um mercado amplamente competitivo, presta serviços inclusive a hospitais e órgãos públicos, como o próprio setor de inteligência da Polícia, o que demonstra a confiança e a relevância de sua atuação — afirmou José Dimas Mazza Marcondes, advogado de Rogério.
Sobre a acusação de uso de cabos furtados, a defesa alegou que a empresa possui nota fiscal de todos os equipamentos apreendidos.
— Temos a nota fiscal de tudo. Até o fuzil encontrado na casa dele tinha documentação. Ele é colecionador, por isso tem essas armas — disse o advogado.
Durante a ação no Quitungo, um terceiro envolvido — identificado como Flávio Dias dos Santos e apontado como sócio de Rogério na Flaquinet — foi preso em flagrante por receptação. Na residência e nas sedes ligadas à empresa, foram apreendidos cerca de 200 modens, cabos e outros equipamentos utilizados para a oferta irregular do serviço.
A outra empresa, RDO Telecomunicações, tem atuação predominante em Cordovil, Cidade Alta e arredores, e seria ligada ao Terceiro Comando Puro. Ela pertence a Renato de Oliveira, que já havia sido preso em flagrante por receptação qualificada, após a polícia encontrar, em um galpão na Penha, grande quantidade de cabos de operadoras regulares e veículos sem nota fiscal.
Rogério e Renato estiveram na Cidade da Polícia e foram liberados ainda nesta terça-feira. Flávio segue detido.
O GLOBO busca a defesa de Renato e Flávio.
Segundo o delegado Pedro Brasil, o serviço prestado por ambas as empresas era de baixa qualidade e chegou a afetar serviços essenciais.
— Hospitais e escolas que faziam uso dessa rede também estavam com problemas. E esse serviço de baixa qualidade extrapola a questão porque essas são unidades que precisam de um serviço de qualidade — ressaltou o delegado.
/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2025/y/T/AWkDdOQTW5XGImJUN2Fg/whatsapp-image-2025-08-05-at-09.24.53.jpeg)
Durante a operação, foram apreendidos um fuzil, duas pistolas, dinheiro em espécie, equipamentos eletrônicos, cabos e cerca de 200 modems de operadoras como Oi e Claro sendo utilizados pelas empresas. Duas pessoas foram detidas. No Morro do Borel, na Tijuca, houve confronto entre agentes e traficantes, mas não há informações sobre feridos. Já no Morro do Quitungo, os policiais encontraram um artefato semelhante a um morteiro. A perícia do Esquadrão Antibombas constatou que o artefato não continha carga explosiva, mas ele foi apreendido e sua origem será investigada.
Empresas autorizadas, mas com atuação irregular
/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2025/y/6/3BvMsuSAaEEARjubOSvw/whatsapp-image-2025-08-05-at-10.52.59.jpeg)
A Anatel confirmou que as empresas citadas possuem autorização para a prestação do serviço de internet. No entanto, segundo a Polícia Civil, embora a autorização exista, a forma de atuação era irregular: as empresas estariam associadas a facções criminosas, impediam a entrada de concorrentes nas comunidades, com o uso de armas, e utilizavam cabos e equipamentos das operadoras regulares, criando um monopólio forçado. Na prática, os moradores se tornavam reféns dos serviços prestados.
Para se ter uma ideia, o número de habitantes em Cordovil e Brás de Pina, junto, passa de 80 mil pessoas que poderiam estar sendo afetadas por esse tipo de prática.
Em nota, a Anatel afirmou que sua atuação se dá exclusivamente quando há irregularidades na prestação dos serviços de telecomunicações, com foco em preveni-las, combatê-las e reprimi-las. A agência esclareceu ainda que é responsável pela concessão de outorgas, regulamentação e fiscalização dos serviços, conforme previsto na Lei Geral de Telecomunicações (Lei nº 9.472/1997), e que não compete à Anatel investigar ou determinar vínculos com facções ou outras organizações criminosas.
Em fevereiro deste ano, minutos após técnicos de uma das empresas clandestinas serem flagrados atuando na rede, perto do Quitungo, a operadora licenciada reportou queda abrupta de sinal na região. Depois foi confirmado o rompimento dos cabos instalados. Além disso, foi verificado que materiais furtados de operadoras regulares estavam sendo utilizados na sede da empresa clandestina.
Em uma das diligências, em março último, sete pessoas foram presas, inclusive uma funcionária em plena atividade de instalação clandestina na região de Brás de Pina.
O material arrecadado na operação desta terça será submetido à análise. O objetivo é que novas diligências sejam realizadas para auxiliar a investigação em andamento.
A operação ocorre no contexto de uma parceria firmada em março deste ano entre a Secretaria de Segurança Pública do Rio e a Anatel, que aprovou um plano de ação para suspender o acesso de provedores clandestinos ligados ao crime. Um levantamento da Subsecretaria de Inteligência da SESP identificou que a exploração de internet é hoje a maior fonte de recursos do crime organizado. Segundo o órgão, 80% das empresas de internet que atuam em comunidades estão sob controle ou associação com facções criminosas.
Com base nesse diagnóstico, a Anatel suspendeu um dos artigos do regulamento que dispensava de outorga os pequenos provedores com até 5 mil acessos — brecha que vinha sendo usada por empresas-fantasma ligadas ao tráfico e à milícia. Agora, todas as prestadoras, independentemente do porte, terão até 25 de outubro para solicitar autorização formal da agência. Caso contrário, terão seus cadastros extintos e o serviço interrompido.
Na capital, existem 638 prestadoras de internet, das quais 333 operam sem outorga. Em todo o estado, são 1.734 empresas — mais da metade com dispensa de autorização, segundo dados da Anatel.
A Subsecretaria de Inteligência da Secretaria de Segurança Pública cruzou dados do Disque-Denúncia e da Ouvidoria com os registros da Anatel e mapeou as empresas instaladas em áreas controladas por milícias e pelo tráfico. A conclusão é que o monopólio da internet já está consolidado na maioria das 813 favelas do Rio.
— Essa alteração no regulamento da Anatel é mais um duro golpe nas organizações criminosas, atingindo seu ponto mais sensível: o financeiro. É uma ação estruturante, com impacto real e duradouro — afirmou o subsecretário de Inteligência da secretaria, delegado Pablo Sartori.
Segundo a Anatel, mais de 40% das empresas autorizadas ou dispensadas não enviaram informações de acesso em 2024, comprometendo a competitividade do setor. Ainda assim, os pequenos provedores foram responsáveis por 53,7% dos acessos à banda larga em 2023, principalmente em áreas com baixo IDH e PIB.
2025-08-05 12:06:00