Ao se ter um celular roubado, além do objeto, podem parar nas mãos de bandidos o acesso a contas bancárias, redes sociais, fotos, vídeos… A 200 metros da delegacia da Tijuca, a 19ª DP, na Zona Norte carioca, uma servidora pública e sua família se tornaram vítimas desse crime, com potencial de desencadear vários outros e que cresceu 39% na cidade do Rio no ano passado. Dali, um dos quatro aparelhos levados pelos ladrões foi parar no Morro do Fallet, dominado pelo Comando Vermelho (CV), e seria revendido, segundo a polícia, no Camelódromo da Uruguaiana. Estava traçado um ciclo do mercado ilegal que a polícia já conhece — mas tem dificuldades de enfrentar — e que sintetiza revelações do Mapa do Crime, do GLOBO, sobre os roubos de celular na capital fluminense.
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O segundo capítulo da série de reportagens com base nos dados da ferramenta mostra que apenas dez dos 147 bairros mapeados acumulam um terço (ou 5.067) de todos os 14.196 casos registrados na cidade em 2024. No ranking dessa primeira etapa que costuma envolver o roubo de celular — o ataque em si à vítima —, a Tijuca, com 581 ocorrências, só perde para o Centro, que teve 1.622 casos. A rota dos bandidos inclui o Maracanã (455 registros), a Barra da Tijuca (424) e Botafogo (423), bairros de classe média e média alta. E tem ainda Realengo (371), Bangu (350), Madureira (294), Campo Grande (288) e Pavuna (259), centros regionais do Rio nas zonas Norte e Oeste.
Os dez bairros tiveram aumento dos casos no ano passado. Na Tijuca, as altas se sucedem desde 2020. Só na comparação de 2024 com o ano anterior, o salto foi de 29,4%. A maior explosão em um ano, no entanto, se deu em Botafogo, onde os registros dobraram: de 207 no ano retrasado, para 423 em 2024 (104,3% a mais).
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Os números evidenciam também que, dos quatro tipos de roubos detalhados no Mapa do Crime — os de veículos, a transeuntes e em coletivo, além do de celular —, a subtração dos telefones apresenta o maior acúmulo de casos em poucos bairros. Em comum, esses lugares têm alta circulação de pessoas ou a proximidade com centros comerciais populares, identificados pela polícia como pontos de receptação e revenda dos aparelhos.
É no Centro, por exemplo, que fica o Camelódromo da Uruguaiana. Bangu tem seu famoso calçadão, e a Pavuna abriga uma tradicional feirinha. Todos esses locais foram alvo, no último ano, de operações que culminaram em apreensões de celulares roubados.
— Estar perto de uma área de revenda pode ser uma vantagem para os bandidos. Os centros comerciais acabam tendo dupla função: atraem muitas pessoas por serem polos de consumo e, por outro lado, facilitam a recolocação desses produtos no mercado rapidamente — afirma Daniel Hirata, coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni/UFF).
O GLOBO rastreou o destino de um dos quatro telefones levados da família da servidora pública da Tijuca, no assalto ocorrido em 27 de dezembro de 2024. E assim se chegou ao Fallet, favela entre o Catumbi e Santa Teresa, na região central da cidade, que as forças de segurança já sabem ser um elo importante na cadeia dos roubos de celular.
Três dias após o crime, às vésperas do Ano Novo, a Polícia Civil fez uma operação na comunidade. O setor de inteligência da 7ª DP (Santa Teresa), havia recebido informações da chegada à favela de um caminhão carregado de drogas que seriam distribuídas na Zona Sul para as celebrações de réveillon. No local apontado na denúncia, os agentes encontraram cinco toneladas de maconha no baú do veículo. Parte da carga já havia sido levada para um bar próximo, na Rua Guaicurus 124. Num cômodo escondido nos fundos do estabelecimento, a surpresa: policiais descobriram, funcionando a todo vapor, uma central clandestina de desbloqueio de celulares roubados.
Mapa do Crime: um terço dos roubos de celular no Rio se concentra em 10 bairros
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Terminal Procópio Ferreira, no Centro, bairro do Rio com 1.622 roubos a celular no ano passado — Foto: Domingos Peixoto / Agência O Globo
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Central do Brasil, no Centro: bairro do Rio é o campeão em casos de roubo de celular em 2024 — Foto: Domingos Peixoto / Agência O Globo
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Praça Tiradentes no Centro do Rio: grande circulação de pessoas facilita os crimes de oportunidade — Foto: Domingos Peixoto / Agência O Globo
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Praça Saens Peña, na Tijuca, segundo bairro com mais roubos de celular no Rio em 2024: 581 casos — Foto: Marcelo Theobald / Agência O Globo
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Ao lado da Uerj, acesso à estação do Maracanã: bairro é o terceiro do Rio com mais roubos de celular em 2024, com 455 casos — Foto: Marcelo Theobald / Agência O Globo
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Avenida das Américas, na Barra da Tijuca, quarto bairro do Rio com mais roubos de celular em 2024: 424 ocorrências — Foto: Marcelo Theobald / Agência O Globo
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Foto ao lado da passagem subterrânea próximo a um shopping, em Botafogo, quinto bairro com mais roubos de celular em 2024: 423 registros — Foto: Alexandre Cassiano / Agência O Globo
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Passageiro na Avenida Brasil, em Realengo, sexto bairro do Rio com mais roubos de celular em 2024: 371 ocorrências — Foto: Marcelo Theobald / Agência O Globo
Em comum, esses lugares têm centros comerciais para a receptação e revenda dos aparelhos, além da grande circulação de pessoas
Foram apreendidos notebooks e 200 telefones roubados ou furtados na Região Metropolitana fluminense naquela mesma semana — um deles pertencia ao filho de 13 anos da servidora pública. Já entre os nove presos na operação, estava Patrick Fontes Souza da Silva, de 31, que a polícia afirma ser um dos maiores receptadores de aparelhos roubados do Rio e responsável pela oficina de desbloqueio.
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Aos agentes, Silva contou que, ao menos desde 2018, era dono de uma loja no Camelódromo da Uruguaiana, onde revendia telefones roubados. O que ele relatou a seguir traz mais elementos que costumam compor o ciclo desse crime que assusta a população.
Aluguel para traficantes e propinas cobradas por agentes públicos
Devido a reiteradas operações policiais, mas também a extorsões por parte de agentes públicos que descobriam a origem das mercadorias, afirmou o receptador, ele optou por mudar seu negócio. Mediante pagamento de um “aluguel” para os traficantes do Fallet, abriu a central clandestina dentro da favela, num local menos exposto a ações das forças de segurança pública. Para chegar à comunidade no dia da operação do fim de dezembro, por exemplo, a Polícia Civil precisou trocar tiros com criminosos.
Após serem desbloqueados, os aparelhos do Fallet seriam distribuídos a revendedores “parceiros” no camelódromo. A operação, portanto, desvendou que ladrões roubam os aparelhos e recebem de 10% a 30% do preço de revenda. Especialistas em desbloqueio, como Silva, recebem aparelhos de dezenas de ladrões diferentes, habilitam os smartphones para voltarem a funcionar e ficam com até um terço do valor arrecadado por aparelho. E, por fim, revendedores são responsáveis por colocar os celulares de volta no mercado.

Mapa do crime: 2º dia mostra que 10 bairros concentram um terço dos roubos de celulares
Daniel Hirata ressalta ainda outro aspecto desse crime:
— O roubo de celular é uma das modalidades que mais impacta a percepção de segurança pública das pessoas. Isso porque está associado a diferentes caminhos: a desmontagem e revenda de peças, a venda do aparelho inteiro ou ainda os golpes aplicados a partir dos dados contidos nos aparelhos.
No caso da operação no Fallet, os policiais envolvidos se impressionaram ainda com o fato de, entre os telefones encontrados, haver produtos roubados em todas as regiões do município do Rio e até em cidades vizinhas, como Niterói.
Silva e os demais especialistas dominavam técnicas de desbloqueio de telefones aprendidas na internet. Da web, baixavam programas capazes de modificar IMEIs (número identificador de cada aparelho) e derrubar barreiras de segurança de iPhones — considerados os celulares mais difíceis de acessar, porém, os favoritos dos bandidos, devido a seu valor de mercado. Eles usavam também técnicas de programação para testar inúmeras combinações de senhas até conseguir destravar os aparelhos. E tentavam acessar as contas bancárias das vítimas para fazer compras e transferências.
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Daquela apreensão, afirma a delegada Kely de Araújo Goularte, responsável pela investigação, metade dos celulares encontrados na central clandestina foi devolvida a seus donos, inclusive o do filho da servidora pública tijucana. Como nos demais casos as vítimas não fizeram boletins de ocorrência ou não mencionaram o IMEI do aparelho, os proprietários ainda não foram identificados.
— O IMEI é como se fosse a placa de um carro, é a forma de identificar o aparelho. Por isso, é fundamental que o número seja informado no registro de ocorrência pela vítima do roubo — afirma a delegada, que reforça a importância de a população não comprar celulares roubados. — É isso que financia a cadeia criminosa.
Reincidência dos suspeitos
Na investigação que ela comandou, a ficha criminal de Patrick Fontes da Silva reflete ainda o que, para policiais que apuram os roubos de celular, é um dos entraves para combatê-los: a reincidência dos suspeitos.
Silva já havia sido preso em flagrante duas vezes comercializando aparelhos roubados. Em abril de 2018, foi detido na Uruguaiana, após tentar vender um iPhone. Dois dias depois, foi libertado por decisão da Justiça. Em janeiro do ano seguinte, foi detido de novo, dessa vez numa ação da polícia na Feirinha da Pavuna, numa barraca repleta de aparelhos. Na abordagem, um celular tocou, e um dos agentes atendeu. Do outro lado da linha, uma vítima afirmou que havia sido roubada horas antes, em Duque de Caxias, e que aquele aparelho era seu. Silva ficou na cadeia por três semanas, até ter a prisão revogada, em 12 de fevereiro.
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Atualmente, o receptador está preso: em maio passado, foi condenado pelo juiz Flávio Itabaiana, da 27ª Vara Criminal da capital, a 12 anos e quatro meses de prisão pelos crimes de tráfico e associação para o tráfico — por conta da droga apreendida na operação no Fallet. Sua defesa nega as acusações e recorre da sentença.
Mesmo sujeitos a penas mais altas que as dos receptadores, os ladrões tampouco passam muito tempo atrás das grades e voltam a cometer crimes. É o que demonstra a trajetória de Maurício Bandeira Lage, o Azulão. Entre 2022 e 2025, ele foi preso seis vezes por roubos e furtos de celular no Centro e na Zona Sul. Em duas ocasiões diferentes, foi solto dois dias após ser detido em flagrante, em audiências de custódia. O período mais longo que ele passou na cadeia foi de junho a dezembro de 2023, quando foi preso por um furto — um mês depois de ganhar liberdade, porém, foi preso novamente.
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A prisão mais recente aconteceu em março passado, quando policiais da 10ª DP (Botafogo) perceberam um padrão numa série de roubos na Zona Sul: após o crime, os aparelhos eram levados para um mesmo apartamento de um condomínio do Minha Casa Minha Vida. A polícia, então, conseguiu um mandado de busca para entrar no local. Lá, 26 celulares roubados foram apreendidos, e quatro homens, presos em flagrante — um deles era Azulão.
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Desde então, ele já foi reconhecido por roubar pelo menos 12 pessoas num período de apenas quatro meses, entre o fim de 2024 e o início deste ano. Nesse período, Azulão usava uma tornozeleira eletrônica, mas, segundo a polícia, o criminoso deixava o aparelho descarregar intencionalmente para cometer roubos sem ser monitorado. Entre as vítimas, estão dois turistas australianos assaltados em Santa Teresa e um casal que reconheceu Azulão por dois roubos diferentes entre 2023 e 2024, em Botafogo. Todos os crimes foram cometidos com armas de fogo. Atualmente, Azulão segue na cadeia, aguardando ser julgado pela série de roubos pela qual é acusado.
Nas ruas, cariocas criam estratégias para tentar se proteger. Andar com um “telefone do ladrão”, aquele aparelho antigo que entrega ao bandido no caso de um assalto, pode parecer surreal. Mas há quem recorra à medida, principalmente, se os trajetos do cotidiano abrangerem os lugares mais inseguros. Nesse sentido, pesquisas sobre a distribuição geográfica de roubos no Rio indicam, inclusive, que as ocorrências de assaltos nos bairros mais perigosos estão aglomeradas, muitas vezes, em poucos “pontos quentes”.
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Em 2019, os pesquisadores Spencer Chainey e Joana Monteiro dividiram a cidade do Rio em células de 150 metros quadrados e analisaram como as ocorrências de roubos e furtos se espalharam por essas unidades espaciais nos anos de 2015 e 2016. O resultado escancara a concentração do crime. Em 2015, só 3,3% das células acumularam metade do total de casos. No ano seguinte, o acúmulo se repetiu, com taxa estável em 3,5%. A mesma metodologia foi repetida para dados de 2019, e o resultado foi parecido: metade dos roubos e furtos aconteceu em 5,3% do território da cidade.
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— Os resultados mostram um padrão tão forte que é quase uma lei natural: cerca de 5% do território concentram metade dos crimes de rua. Os “pontos quentes” se mantiveram estáveis mesmo com o passar dos anos. Por isso, a resposta do poder público deve ser bastante específica, com intervenções focadas nesses pontos — defende Joana Monteiro, diretora do Laboratório para Redução da Violência (Leme) e uma das autoras das pesquisas.
Os “pontos quentes” identificados nos estudos entre 2015 e 2019 ficam em bairros campeões de roubos de celular no Mapa do Crime: Centro, Madureira, Pavuna, Bangu e Tijuca.
2025-07-22 00:01:00