O roubo de veículos no Rio deixou de ser apenas uma estatística e se tornou combustível estratégico para a expansão territorial das facções criminosas. Um trágico exemplo desse processo é o do Tiggo cinza, carro roubado em dezembro de 2024, na Linha Amarela. Ele se tornou uma peça-chave no ataque que culminou com a morte do policial civil da Coordenadora de Recursos Especiais (Core) João Pedro Marquini, de 38 anos, em março deste ano. Integrante da elite da polícia, ele era marido da juíza Tula Correa de Mello.
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O assassinato do policial ocorreu na noite de 30 de março de 2025, durante uma tentativa de roubo na Serra da Grota Funda, em Guaratiba, na Zona Oeste. O carro usado pelos bandidos havia sido levado três meses antes na Taquara — onde os registros de roubo de veículos saltaram de 177 para 243 em um ano, um crescimento de 37,3%.
O Tiggo fora levado diretamente para o Morro dos Tabajaras, em Copacabana, onde passou a ser usado por Vinicius Kleber Di Carlantonio Martins, o Cheio de Ódio, chefe do tráfico local, ligado ao Comando Vermelho (CV).
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Ali, o veículo foi clonado — uma prática comum para evitar flagrantes policiais. A placa original foi substituída por uma de São Paulo, de um carro do mesmo modelo. Durante os três primeiros meses do ano, circulou exclusivamente dentro da comunidade, servindo ao tráfico.
O trajeto da morte e a troca de veículo
Na noite em que Marquini foi morto, quatro homens armados — três com fuzis — saíram do Tabajaras em direção a Antares, em Santa Cruz. Essa região da Zona Oeste é um território dominado por milicianos e considerado estratégico pelo CV, que tenta avançar sobre a área. No local, o grupo foi recebido a tiros pelos paramilitares. O carro ficou com a lataria crivada de balas, e o vidro traseiro estilhaçado.
Com o risco de chamar atenção da polícia, os criminosos decidiram então trocar de carro na volta. Na Serra da Grota Funda, abordaram o Outlander dirigido pela juíza Tula Correa de Mello. O casal seguia em carros separados. O Sandero do policial ia à frente e foi interceptado. Quando João Pedro Marquini percebeu a ação, tentou reagir para proteger a esposa. Tula conseguiu escapar sem ferimentos.
O agente foi morto com cinco tiros. O Tiggo usado no início da ação foi abandonado com sinais de blindagem artesanal — mais uma evidência da estrutura criminosa montada em torno de veículos roubados.
A geografia do avanço dos carros roubados
O caso não é isolado. O Mapa do Crime, que juntou dados inéditos do Instituo de Segurança Pública do Rio (ISP), mostra que as áreas que registraram explosões nos roubos de veículos, entre 2023 e 2024, coincidem com territórios em disputa ou já dominados pelo CV — especialmente em zonas antes controladas pela milícia. Na região da Grande Jacarepaguá, onde a Taquara faz parte, o aumento foi expressivo:
- Jacarepaguá: de 126 para 175 roubos de carro, uma alta de 38,9%
- Freguesia: de 11 para 21, um aumento de 90,9%
- Anil: de 25 para 39, um crescimento de 56%
- Curicica: de 71 para 96, um aumento de 35,2%
- Recreio: de 72 para 101, uma alta de 40,3%
- Vargem Grande: de 13 para 24, um aumento de 84,6%
Esse padrão se repete em áreas da Zona Norte. Pelo menos cinco bairros para onde se espraiou o Complexo de Israel, controlado pelo traficante Álvaro Malaquias Santa Rosa, ligado ao Terceiro Comando Puro (TCP), registraram explosões nos roubos de carro no mesmo período:
- Cordovil: de 156 para 212, aumento de 35,9%
- Parada de Lucas: de 102 para 231, uma alta de 126,5%
- Vigário Geral: de 98 para 221, um crescimento de 125,5%
- Brás de Pina: de 159 para 202, saltando 27%
- Jardim América: de 38 para 73, um aumento de 92,1%
E nos maiores complexos da cidade:
- Penha: de 101 para 228 (125,7%)
- Bonsucesso: de 273 para 465 (70,3%)
- Pavuna: de 423 para 637 (50,6%)
- Costa Barros: de 102 para 156 (52,9%)
Nos cinco bairros onde o Complexo de Israel fincou bases, o padrão se repete: à medida que o domínio do TCP avança, os roubos de veículos disparam. Isso porque esses carros não apenas sustentam a logística de ataques e deslocamento de armas e drogas, como também alimentam a indústria clandestina de blindagem e clonagem — com alguns modelos sendo desmontados para abastecer o mercado paralelo de peças, como apontou Daniel Hirata, coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni/UFF).
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— O roubo de veículos é parte de uma cadeia de valor criminosa. Envolve desmanches, leilões, locais de revenda de peças e, muitas vezes, corrupção policial. É um mercado de natureza organizada, e não casual. Diferente de crimes pontuais, aqui o combate passa necessariamente por ações regulatórias e estruturais — afirma o especialista.
O caso de Marquini revela o ciclo completo: um carro roubado no asfalto de um bairro da Zona Oeste é levado para uma comunidade dominada, vira “ativo estratégico” do tráfico, participa de uma ofensiva armada, e é usado no assassinato de um policial de elite.
Onde tem mais roubo de veículo no Rio?
De acordo com o Mapa do Crime, o bairro de Irajá aparece com o maior número absoluto, somando 766 casos em 2024. Pavuna e Bangu também estão entre os mais afetados, com 637 e 491 veículos roubados, respectivamente.
Onde esse crime mais aumentou?
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Entre os bairros do Rio onde o roubo de veículos mais aumentou em 2024, o Rio Comprido, no Centro, lidera com folga: o número de casos mais que triplicou, saltando de 27 para 95 — uma alta de 252%. Em seguida, aparece o Maracanã, na Zona Norte, onde os registros mais que triplicaram também, subindo de 61 para 199. Já em São Cristóvão, o avanço foi quase tão expressivo: os casos quase triplicaram, crescendo de 113 para 297.
A Cidade Universitária, porém, tem a maior taxa: 5.372,2 por 100 mil habitantes, que é cerca de um carro roubado para cada 18 moradores da região. Depois dela vem Bonsucesso, que aparece também entre os bairros com maior taxa de roubo de veículos por 100 mil habitantes: 2.756.
2025-07-24 12:00:00