Hermeto Pascoal não apenas tocava instrumentos: ele os reinventava. Sua música emergia de tudo ao seu redor, da natureza ao cotidiano, da panela de cozinha ao galinheiro, da garrafa ao próprio corpo. Cada som era matéria-prima de uma alquimia sonora que só ele conseguia executar. O “Bruxo” provou que a música não está confinada ao que é formalmente aceito; ela pulsa em todos os elementos da vida.
O extraordinário está no ordinário
Hermeto Pascoal, que faleceu neste sábado (13/9), aos 89 anos, não foi apenas um músico; foi um alquimista que enxergava a música em cada fragmento da vida. Ele nos mostrou que o extraordinário não está em produtos ou status, mas na autenticidade, na liberdade de explorar, criar e se expressar sem medo da norma ou da mediocridade alheia. Sua obra nos revela que a beleza está nas coisas simples, nas excentricidades autênticas, nos elementos do mundo ao nosso redor que se tornam instrumentos de encantamento.
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A criança que tocava o universo
O “Bruxo”, como era chamado, brincava com a música como uma criança brinca com a imaginação. Transformava porcos, galinhas, panelas, garrafas e serras em sons. Cada gesto, por mais estranho que parecesse, tinha lógica e propósito. Ele não buscava aplausos, fama ou aceitação: tocava para explorar, para viver a vida em sua plenitude sonora. Hermeto nos ensinou que a música não está apenas nas partituras, mas em tudo o que respira, pulsa e vibra ao redor de nós.
Discografia como cartografia da genialidade
Ao longo de sua carreira, Hermeto lançou álbuns que marcaram o Brasil e o mundo: Som Maior (1965), Quarteto Novo (1967), Brazilian Octopus (1969), Hermeto Pascoal (1971), A Música Livre de Hermeto Pascoal (1973), Slaves Mass (1977), Cérebro Magnético (1980), Montreux Jazz Festival ao vivo (1982), Brasil Universo (1986), Hermeto Solo por Diferentes Caminhos (1988), Mundo Verde Esperança (2003), Hermeto Pascoal e sua Visão Original do Forró (2018) e Pra você, Ilza (2024). Cada obra revela sua habilidade de unir erudição e espontaneidade, jazz e samba, pop e música regional, criando universos sonoros únicos.
A lógica da loucura
O que para muitos parecia “loucura” no palco de Hermeto era, na verdade, raciocínio musical absoluto. Ele combinava instrumentos, objetos e sons naturais com precisão matemática, inteligência harmônica e criatividade ilimitada. Cada nota emitida era resultado de uma mente capaz de transformar o cotidiano em música, fazendo da vida um concerto universal.
O mago que decifrava Deus
Hermeto Pascoal não apenas tocava música: ele tocava o mundo, decifrava os fragmentos do divino em sons, ritmos e silêncios. Sua genialidade vinha da capacidade de perceber conexões invisíveis entre os elementos da natureza e da existência. Ele nos libertava do pensamento fechado e nos permitia experienciar o som como manifestação do universo.
A riqueza da autenticidade
Hermeto nos mostrou que riqueza verdadeira não está em seguidores, fama ou bens, mas em ser autêntico, criativo e generoso com o mundo. Ele foi um influenciador sem redes sociais, um gigante que nos ensinou que a experiência, a descoberta e a sensibilidade são as maiores dádivas que alguém pode oferecer.
A invenção como essência
Nos discos solos e participações históricas, Hermeto moldou o impossível em melodia. Em Som Maior (1965), no Sambrasa Trio, ele já mostrava uma capacidade de sintetizar jazz e samba com a naturalidade de quem respira música. Em Quarteto Novo (1967), trouxe inovação ao unir o violão, a viola e a percussão em um diálogo inventivo, deixando sua marca em canções como “Nem o mar sabia”. O álbum Brazilian Octopus (1969) é a prova de que sua criatividade não conhecia limites: sons de fábrica se tornaram ritmos, desfiles se transformaram em sinfonias.
O mundo como instrumento
Hermeto não se contentava com o piano ou a flauta: ele incorporava a vida como parte de sua música. Em A música livre de Hermeto Pascoal (1973), a experimentação com porcos, galinhas e gansos mostrou que a música podia nascer em qualquer lugar, com qualquer elemento, desafiando o senso comum e expandindo os horizontes da percepção sonora. Ele ensinava que o extraordinário está escondido no ordinário, mas somente os que se permitem ouvir podem perceber.
O virtuoso universal
Sua genialidade não se limitava ao improviso ou à excentricidade: cada nota, cada ritmo tinha lógica e precisão matemática, capazes de dialogar com jazz, música erudita, pop, forró, choros e ritmos internacionais. Hermeto era um alquimista que entendia os elementos do universo e transformava tudo em som, como se cada nota fosse uma equação que unia mente, corpo e natureza. O mundo era seu laboratório, e ele o mais eficiente cientista da musical.
Conexões memoráveis
Entre colaborações históricas, o encontro com Elis Regina no Montreux Jazz Festival (1982) é um exemplo de sua genialidade coletiva: acompanhando uma das maiores vozes brasileiras, Hermeto transformou clássicos como “Garota de Ipanema” em experiências novas, inusitadas e universais. Seus discos Brasil Universo (1986) e Hermeto solo por diferentes caminhos (1988) mostram que, mesmo sozinho, ele conseguia preencher o mundo com uma sinfonia de criatividade, explorando instrumentos comuns de formas extraordinárias.
Uma vida de experimentação
Em Mundo Verde Esperança (2003) e Hermeto Pascoal e sua Visão Original do Forró (2018), ele continuou a construir pontes entre gerações e estilos. Cada faixa, cada intervenção, era um convite à imaginação e à contemplação do que é possível fazer com criatividade absoluta. Seu último disco, Pra você, Ilza (2024), é uma carta de amor e homenagem, uma síntese de toda a experiência de vida e musicalidade do bruxo, que transformava sentimentos em notas que tocavam o espírito.
A lição da autenticidade
O que diferencia Hermeto de tantos outros é que ele não viveu para agradar plateias nem se sujeitou a padrões. Ele foi livre, infantil e profundo ao mesmo tempo, brincando com sons, inventando ritmos, explorando cada elemento do mundo. Hermeto é um lembrete de que o verdadeiro valor está na autenticidade, no prazer de ser e existir plenamente, sem medo do julgamento ou da superficialidade da sociedade.
Um legado infinito
Hermeto Pascoal nos mostrou que o universo é um instrumento, que a música é uma linguagem divina e que a genialidade não é exibicionismo, mas uma capacidade de perceber, criar e compartilhar beleza. Ele foi um mago do som, um alquimista da vida, uma ponte entre o humano e o cósmico. O bruxo se foi, mas deixou uma herança sonora que desafia qualquer limite e nos inspira a ouvir com atenção, a contemplar a simplicidade e a buscar a liberdade da criação.
O feitiço permanece
Embora Hermeto Pascoal tenha partido, sua música continua a existir em cada respiração, cada objeto, cada instante em que o mundo se transforma em som. Ele nos ensinou que a vida, como a música, pode ser infinitamente reinventada. E que o extraordinário está ao alcance de quem se permite ouvir com atenção, emoção e alma.