O caminho da fuga é quase sempre o mesmo: pela mata. No último sábado, numa ação dos ministérios públicos e das secretarias de Segurança do Ceará e do Rio, além da Polícia Militar fluminense, centenas de bandidos — cerca de 400, segundo cálculos dos investigadores — foram flagrados numa área verde no alto da Favela da Rocinha por um drone recém-adquirido pelo governo do estado, capaz de filmar em locais com pouca iluminação. As imagens impressionantes mostram homens com roupas pretas ou camufladas, em fila e armados com fuzis, deixando a localidade conhecida como Dioneia rumo à Floresta da Tijuca. O vídeo foi divulgado com exclusividade pelo blog Segredos do Crime, do GLOBO. De acordo com a investigação, traficantes do Ceará pagavam R$ 100 mil por hospedagem na parte alta da favela.
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Dezenas de bandidos do CV do Ceará e do Rio com fuzil fogem pela mata em operação do Bope
A operação tinha como objetivo cumprir 29 mandados de prisão contra chefes do Comando Vermelho (CV) cearense, que estão escondidos na Rocinha há dois anos. No entanto, apenas uma pessoa foi presa. Questionado ontem sobre um possível vazamento de informações, o governador Cláudio Castro respondeu que, se houve, partiu da polícia cearense.
— Questão de vazamento ou não, essa foi uma operação do Ceará. Se houve, com certeza foi do pessoal da polícia de lá. Daqui, a gente tem a tranquilidade de ter os nossos dados muito compartimentados. É óbvio que, como é uma investigação de lá, tudo foi compartilhado com o Ceará. Acho que tem que haver uma investigação, sim, de quem cedeu essas imagens. Porque quem cede para o jornalista pode ter cedido para pessoas que não deveriam ter acesso àquelas imagens — disse Castro.
‘Houve preparo”, diz Castro
O Ministério Público do Ceará não quis se pronunciar sobre a acusação feita pelo governador. Já a Polícia Civil cearense, em nota, lamentou a declaração e afirmou que o político fluminense carece de informações. Para o governador, mesmo assim, a operação foi considerada “bem-sucedida”.
— Em primeiro lugar: houve preparo, investigação e inteligência da polícia em fazer uma operação daquele tamanho sem nenhum efeito colateral. Segundo: mostrou o número de criminosos de outros estados no Rio. Nós temos que ter o governo federal entrando aqui, temos que ter o bloqueio da entrada de armas. Aquele arsenal que vocês puderam ver não foi fabricado no Rio — afirmou Castro, que chamou os traficantes do CV, mais uma vez, de terroristas.
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As imagens dos criminosos fugindo da Rocinha foram vistas em tempo real em um telão instalado na antessala do secretário da Polícia Militar, Marcelo de Menezes, no Quartel General, no Centro. Desde a madrugada, Castro, o secretário da PM e o de Segurança Pública, Victos Santos, acompanharam a operação policial com promotores do Rio e do Ceará.
A cena da fuga revela ainda a organização militar dos traficantes. Ao perceber a entrada do Batalhão de Operações Especiais (Bope) no morro, os bandidos já tinham pronto o seu kit de sobrevivência na selva: mochila com suprimentos e fuzil.
Não é de hoje que os bandidos escapam pela floresta. Em outubro de 2017, o então chefe do tráfico da Rocinha, Rogério Avelino da Silva, o Rogério 157, fugiu pela mata durante uma operação das forças de segurança do estado — com apoio de 950 militares do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. O traficante só foi preso dois meses depois numa favela na Zona Norte.
No alto da Rocinha, a vegetação é exuberante, mas há trilhas. Especialistas em montanhismo ouvidos pelo GLOBO relatam que há diversos caminhos para deixar a favela. Um deles, o mais comum, segue até uma torre, na localidade conhecida como Ponta das Andorinhas.
— Pela Vista Chinesa, a pessoa pode descer até o Horto ou o Jardim Botânico, tanto pelo asfalto quanto por trilhas. Também é possível acessar o Parque da Cidade, na Gávea. Já pela Mesa do Imperador, além do Horto e do Jardim Botânico, chega-se ao Alto da Boa Vista, à Gávea Pequena e à Estrada do Córrego Alegre. Ainda há uma rota pela Pedra da Proa, seguindo pelo Morro do Queimado, e descendo pelas estradas do Redentor e do Sumaré. São as rotas mais óbvias para eles (traficantes). Caminham sem serem incomodados e ainda têm a opção de resgate pelo asfalto — comentou o montanhista e guia do Centro Excursionista Brasileiro (CEB) Jeremias Freitas.
Outro que conhece bem a região é Horácio Ragucci, também guia do CEB. Segundo ele, a Floresta da Tijuca tem trilhas antigas, centenárias. Segundo ele, a Trilha da Dioneia alcançando a Ponta das Andorinhas e o Morro do Cochrane, na Gávea, não é tão difícil para jovens.
— Pelas imagens do vídeo, percebe-se que os traficantes caminham devagar, até por ser um grupo grande. O mais provável é que seja a trilha pela Ponta das Andorinhas, que é mais aberta e não tão complicada para quem tem o corpo malhado como o deles. Além disso, devem ter alguém que os guia, alguém que conhece bem o trajeto. E estamos na época do celular: basta pedir um carro para fazer o resgate quando ele chegam ao asfalto. Mas nós não podemos fazer essa trilha devido ao perigo de cruzar com eles (os bandidos) — disse Ragucci.
Hospedagem por R$ 100 mil
As investigações sobre os traficantes cearenses escondidos na Rocinha começaram três dias antes das eleições para a prefeitura de Santa Quitéria, cidade do interior do Ceará, em 2024. Segundo o Grupo de Atuação Especializada no Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ceará, a promotoria eleitoral pediu auxílio por desconfiar que o Comando Vermelho (CV) de lá estaria coagindo eleitores a reelegerem o então prefeito.
— Há informações de que o então prefeito ameaçava também opositores, expulsando-os de Santa Quitéria — explicou um dos promotores do Gaeco, que pediu para não ser identificado.
A partir da delação premiada de um traficante cearense, descobriu-se que os chefes do CV local teriam recebido R$ 1,5 milhão pelo apoio ao político e que estavam escondidos na Rocinha. Durante a operação de sábado — a segunda feita com o Gaeco do Ceará no Rio —, foram apreendidos dezenas de celulares para análise. Há informações, ainda não confirmadas, de que 29 chefes do tráfico do Ceará pagavam R$ 100 mil para se “hospedarem” na Dioneia. Não se sabe se o valor era mensal ou anual. Além dos chefes, o Gaeco calcula que 80 bandidos tenham vindo do Ceará para fazer a segurança da cúpula. Daí a informação de que, nas imagens, havia cerca de 110 cearenses, sendo os demais bandidos do Rio e de outros estados, como o Pará.
O chefe do tráfico do CV na Rocinha, John Wallace da Silva Viana, o Johnny Bravo, teria aceitado abrigar os bandidos do Ceará, num esquema apelidado de “home office”. Na operação de sábado, foram encontradas duas casas de alto padrão que seriam dos chefes cearenses: José Mário Pires Magalhães, o ZM ou Bin Laden; e Anastácio Paiva Pereira, o Doze ou Paizão. Com extensa ficha criminal, os dois são suspeitos de praticar crimes com muita crueldade: eles usariam como bolas de futebol as cabeças de inimigos cortadas com motosserras.
2025-06-06 04:30:00