Com informações de Diário do Rio. Há instituições que ajudam a explicar uma cidade. Outras ajudam a explicar um país. E há aquelas, raras, que fazem as duas coisas ao mesmo tempo. O Centro Dom Vital ( @centrodomvital ) pertence a esse último grupo. Criado em 1922, no coração do então Distrito Federal, ele nasceu quando o Centro do Rio de Janeiro era mais do que um endereço: era um modo de pensar, debater e viver a vida pública brasileira. Entre igrejas seculares, livrarias, jornais, cafés e gabinetes, o Centro Dom Vital se afirmou como o principal núcleo organizado do pensamento católico leigo no Brasil — uma espécie de think tank antes mesmo de o termo ganhar cidadania por aqui.
Fundado por Jackson de Figueiredo, o Centro surge num momento em que o catolicismo brasileiro buscava se reorganizar intelectualmente diante das transformações do século XX. Não se tratava de devoção privada ou de religiosidade de sacristia, mas de pensamento público, crítico e articulado, disposto a dialogar — e muitas vezes a confrontar — as grandes correntes políticas, filosóficas e culturais do seu tempo. O Rio de Janeiro, capital da República, oferecia o cenário ideal para isso: uma cidade onde decisões nacionais se cruzavam diariamente com ideias universais.
Ao longo das décadas seguintes, o Centro Dom Vital se tornaria ponto de passagem obrigatório para intelectuais, juristas, escritores e jornalistas interessados em compreender o Brasil à luz da tradição cristã. Seu nome mais emblemático talvez seja o de Alceu Amoroso Lima, que, a partir dali, se consolidou como um dos grandes ensaístas do país, dialogando com democracia, direitos humanos, cultura e fé sem jamais reduzir o pensamento católico a dogma ou panfleto. O Centro funcionava como espaço de formação, mas também de debate aberto, com revistas, conferências e textos que circulavam muito além dos seus muros. Para se ter uma idéia, o primeiro poema publicado de Carlos Drumond de Andrade foi lançado nas páginas da revista do Dom Vital.
É impossível separar essa história da própria geografia espiritual e cultural do Centro do Rio. O Centro Dom Vital nasceu e cresceu cercado por igrejas históricas, arquivos, instituições culturais e redações de jornais. A poucos passos, estavam templos que moldaram gerações, ruas onde se imprimiam livros e ideias, e calçadas por onde passavam homens e mulheres que pensavam o destino do país. O catolicismo ali não era periférico nem tímido: fazia parte do tecido urbano, intelectual e simbólico da cidade.
O tempo passou, a capital mudou para Brasília, o Centro do Rio enfrentou esvaziamentos e ciclos de decadência e renascimento. Muitas instituições desapareceram ou migraram. O Centro Dom Vital, não. Ele permaneceu. Hoje, segue ativo, com sede própria na Rua Araújo Porto Alegre, reafirmando uma continuidade rara num país de tantas rupturas. Permanecer ali é, por si só, uma afirmação: de memória, de vocação intelectual e de compromisso com o espaço urbano que o viu nascer.
Dom Vital Maria Gonçalves de Oliveira, que dá nome ao Centro, foi uma das figuras mais marcantes — e controversas — da Igreja brasileira do século XIX. Nascido em Pernambuco, em 1844, tornou-se bispo de Olinda ainda muito jovem e rapidamente ganhou projeção nacional ao se envolver no que ficaria conhecido como a Questão Religiosa, conflito que opôs a Igreja Católica ao Império do Brasil. Num país oficialmente católico, mas cada vez mais influenciado por ideias liberais e pelo poder das irmandades leigas ligadas à maçonaria, Dom Vital defendeu com firmeza a autonomia da Igreja em matéria de fé e disciplina, recusando-se a ceder a pressões políticas que julgava incompatíveis com a doutrina católica.
Essa postura lhe custou caro. Em 1874, Dom Vital foi condenado e preso pelo governo imperial, tornando-se símbolo de um embate profundo entre consciência religiosa e poder civil. Libertado apenas anos depois, sua figura passou a representar, para gerações posteriores, não apenas um bispo combativo, mas a ideia de que o catolicismo brasileiro podia — e devia — pensar, argumentar e se posicionar no espaço público. Ao escolher Dom Vital como patrono, o Centro Dom Vital não evocou apenas um nome histórico, mas um programa intelectual: a afirmação de um pensamento católico culto, consciente de sua tradição e disposto a dialogar criticamente com o seu tempo, sem subserviência nem isolamento.
Não se trata de nostalgia vazia nem de exaltação automática. Falar do Centro Dom Vital é falar de uma experiência concreta de pensamento católico brasileiro que influenciou debates sobre política, cultura, educação e sociedade ao longo de mais de um século. É lembrar que o catolicismo, no Brasil, também se expressou — e ainda se expressa — em livros, ideias, argumentos e diálogo público. E é reconhecer que o Centro do Rio de Janeiro, tantas vezes reduzido a cenário ou problema urbano, foi e continua sendo um território fértil para a vida intelectual.
Num momento em que o Centro volta a ser redescoberto, revitalizado e reocupado, lembrar do Centro Dom Vital é lembrar que certas instituições não apenas ocupam prédios: elas habitam o tempo. Entre igrejas centenárias e ruas carregadas de história, ele segue como testemunho de que o pensamento católico brasileiro teve — e ainda tem — endereço certo, sotaque carioca e vocação pública.
2025-12-25 18:58:00



