Com informações do Diário do Rio. Há cidades que se tornam belas; outras, que se tornam fortes; poucas conseguem ser civilizadas. O Rio já foi uma delas. Hoje, porém, parece ter esquecido a lição mais elementar do urbanismo, da filosofia política e da própria história da humanidade: o espaço público é sagrado.
Não sagrado no sentido litúrgico — embora, para nós católicos, toda vida coletiva tenha algo de sacramental — mas sagrado porque é o bem comum por excelência, o território onde todos nos igualamos. É o lugar que obriga o indivíduo a elevar-se acima dos seus impulsos privados. É o chão onde uma sociedade se reconhece. E, sobretudo, é a sala de aula invisível onde a cidade educa – ou deveria educar – aqueles que nela vivem.
Mas quando a cidade abdica da ordem, quando as praças se transformam em latrinas, quando o pedestre é expulso por barracas clandestinas, quando monumentos são riscados por pichadores ou destruídos por viciados que confundem vandalismo com identidade, quando caixas de som com urros e batidas insuportáveis substituem qualquer vestígio de música, e quando gritos ocupam o lugar da convivência — não é apenas a estética que se deteriora. É a civilização que se dissolve.
A Pedagogia do Caos
O espaço público ensina o tempo inteiro.
- Uma calçada livre ensina respeito.
- Uma calçada tomada ensina que a lei é opcional.
- Um muro limpo ensina cuidado e memória.
- Um muro pichado ensina que nada merece preservação.
- Uma praça silenciosa ensina convivência.
- Uma praça ensurdecida por caixas piratas ensina agressividade.
A cidade educa — ou deseduca — pelos exemplos que dá. E o Rio, hoje, tornou-se um professor derrotado, incapaz de impor disciplina, decoro ou limite, em tempos de Cavalo Taradão. Em muitos trechos, a cidade parece implorar que cada um cuide de si porque o bem comum está abandonado à própria sorte. É a filosofia do “faz o que tu queres, pois é tudo da lei” aplicada às ruas.
Não há civilização que sobreviva a isso.
Camelôs clandestinos: ocupação predatória do que é de todos
É preciso dizer com todas as letras: camelô clandestino não é empreendedor. Não está “só trabalhando”. Está deseducando, sujando, infringindo a lei e ajudando a derrotar o comércio formal pagador de impostos.
Não é vítima, não é um personagem romântico do
comércio de rua — isso é narrativa de quem não vive a realidade do pedestre, do idoso, do cadeirante ou do trabalhador honesto que paga impostos.
Camelô clandestino é ocupação irregular de um bem público. É privatização selvagem da calçada. É a criação, tijolo por tijolo, de cidades paralelas onde o Estado não entra e onde a ordem é determinada pelo mais forte — nunca pelo mais justo. E depois reclamamos das barricadas dos traficantes: mas achamos bonitinho as barricadas dos não-traficantes.
Quando o poder público tolera isso, está dizendo aos cidadãos que a regra não vale nada. Que o interesse coletivo é inferior ao interesse particular. Que o espaço público é terra arrasada. E onde a calçada está tomada ao arrepio da lei, a civilização recua um passo.
Pichadores: a estética da desistência
Há décadas tenta-se impor ao carioca a ideia de que pichação é arte. Não é. Pichação é o atestado visual da ausência do Estado.
É a assinatura do abandono.
É o grito agressivo e porco de quem não reconhece o valor simbólico da cidade.
O grafite autorizado pode ser até ser belo, mas a pichação, nunca. Pichador não se expressa: invade. Não cria: destrói. Não acrescenta: subtrai.
É a estética do niilismo, da recusa de qualquer hierarquia, da negação da história. O muro pichado é a marca exata do instante em que a cidade deixa de ensinar para passar a repetir a barbárie que tolera.
O Barulho como Ideologia do Caos
O espaço público não suporta gritaria, música em caixa pirata, motos turbinadas, bailes improvisados, vozerios agressivos que transformam ruas em arenas. Isso não é cultura. Isso não é identidade. Isso não é resistência.
É a queda do autocontrole, fundamento de toda sociedade civilizada. A cidade onde ninguém pode descansar não é cidade: é acampamento selvagem, é território de impulsos animais, é o colapso da ideia de convivência. E quando a falta de silêncio se torna regra, o espírito coletivo adoece.
A Perda da Infância e o Colapso das Instituições
A degradação do espaço público está profundamente ligada à degradação da infância. Retornamos ao século XIX, quando uma criança equivalia a um adulto de pequena estatura, e podia trabalhar nas fábricas, mas sem nesta nova versão poder ser verdadeiramente punida pelos seus crimes e atos ilícitos?
Crianças que crescem no barulho, no lixo, na sexualização precoce, na violência sonora, na desordem estética, aprendem desde cedo que não há limites — e onde não há limites, não há futuro. Mas não é “a cultura da favela” que estraga crianças.
É o Estado ausente, o tráfico presente, o ruído permanente, a rua que já não educa, a escola que já não forma, a cidade que já não ampara, o espaço público que, mesmo em regiões turísticas, fede a fezes, urina, lixo e chorume. Um espaço público que já não engrandece, não ensina: só mostra o declínio da sociedade.
Quando a cidade abandona o seu papel pedagógico, ela mergulha a sociedade inteira em um estado de regressão — adultos infantilizados e crianças adultizadas, todos jogados numa lógica de sobrevivência, nunca de convivência.
A Civilização Começa na Calçada — e Morre Nela
O Rio precisa recuperar a noção elementar de que o espaço público é o altar laico da civilização. É o lugar mais sagrado da vida urbana. É onde cada gesto — jogar lixo, riscar muro, urinar na rua, montar barraca ilegal, gritar às três da manhã — é um sacramento às avessas, um domínio do mal sobre aquilo que deveria ser reverenciado.
Não há cidade limpa onde o lixo é aceito. Não há cidade bela onde o vandalismo é tolerado. Não há cidade justa onde a calçada é privatizada, inclusive pelo formal que já adere à ilegalidade pelo mau exemplo do informal.
Não há cidade segura onde o Estado renuncia. Não há cidade civilizada onde o espaço público é profanado diariamente. A decadência não começa nos grandes escândalos, começa sim na falta de ordem à porta de casa.
Voltar a Ser Civilizados É Possível — e Urgente
Não se trata de nostalgia. Trata-se de responsabilidade histórica. O Rio já soube ser elegante, disciplinado, discreto, belo.
O Rio já teve praças impecáveis, ruas silenciosas, monumentos respeitados, cidadãos orgulhosos e um senso de pertencimento que atravessava gerações.
Nada disso se perdeu para sempre: temos muita coisa ainda que pode ser tratada, recuperada e enaltecida. Mas tudo isso se perderá definitivamente se continuarmos a fingir que camelô ilegal é folclore, que pichação é arte, que barulho é cultura, que sujeira é inevitável.
A civilização não é espontânea. Ela requer ordem. Ela requer decoro. Ela requer limites. Ela requer autoridade. Ela requer beleza. Ela requer silêncio nas áreas residenciais. Sobretudo, ela requer vontade.
A Cidade que Queremos Voltar a Ser
Se quisermos reconstruir o Rio, o caminho não começa em discursos grandiosos, mas no gesto simples — porém revolucionário — de tratar o espaço público como sagrado.
Calçadas livres. Muros limpos. Praças silenciosas em zonas residenciais. Comércio ordenado. Patrimônio preservado. Normas cumpridas, mesmo que com a licença poética da civilização carioca. Cultura valorizada. A verdadeira imagem de uma cidade não está apenas nos cartões-postais, e sim também na forma como ela se comporta quando ninguém está olhando.
E hoje, infelizmente, o Rio tem sido visto o tempo inteiro — e raramente se comporta como uma capital digna da sua própria história, mas ainda é tempo de recuperar o sagrado. A cidade começa na calçada, e a civilização começa no respeito à divindade da urbe: o sagrado espaço público.
2025-12-07 10:13:00



