Diálogos interceptados pela Polícia Federal que fazem parte da Operação Zargun, deflagrada em setembro passado, trazem à tona contatos do Comando Vermelho (CV) — alvo da operação mais letal da história do Rio, no mês passado — com um ex-deputado estadual, um secretário e um ex-subsecretário do governo Cláudio Castro. Conversas e depoimentos que integram a investigação e foram obtidos pelo GLOBO mostram tentativas da facção de influenciar o policiamento ostensivo, pagamentos de propina, um pedido de resgate de carros roubados e até um encontro presencial entre um integrante do CV e Gutemberg de Paula Fonseca, secretário de Defesa do Consumidor, para tratar de “cobertura política”. Um relatório da PF anexado ao inquérito aponta que “o esquema criminoso evidencia uma profunda infiltração no sistema político e na administração pública, buscando capturar setores estratégicos do Estado para garantir a impunidade e consolidar a dominação territorial da facção”. Gutemberg Fonseca nega que o encontro tenha acontecido.
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A reunião, segundo as investigações, ocorreu em maio passado e é mencionada numa conversa por WhatsApp entre Gabriel Dias de Oliveira, o Índio do Lixão — apontado pela Polícia Federal como integrante do CV e chefe do tráfico da Favela do Lixão, em Duque de Caxias —, e Alessandro Pitombeira Carracena, que foi secretário de Esporte e Lazer em 2022 e subsecretário de Defesa do Consumidor até janeiro passado. Na conversa, Índio contou que se encontrou com Fonseca para pedir “cobertura política”. O diálogo foi revelado pela Folha de S.Paulo.
Gutemberg Fonseca conhece Carracena há mais de 20 anos e foi o responsável por nomeá-lo para cargos no governo. Em depoimento à PF, após ser preso, Carracena confirmou que soube da conversa entre Índio e Fonseca pelo próprio secretário de Defesa do Consumidor. “Eu tomei conhecimento dessa conversa pelo próprio Gutemberg, e o Gutemberg me falou que quem levou o Gabriel até ele teria sido o Luiz Eduardo (Luiz Eduardo Cunha Gonçalves, o Dudu, assessor do ex-deputado TH Joias, ambos também presos na operação) e o assessor dele, salvo engano, o senhor Marques. Eles tiveram essa conversa e fizeram as tratativas deles lá, mas eu, particularmente, nunca tive qualquer tipo de articulação ou tratativa política, seja com o senhor Gutemberg, seja com o próprio senhor Gabriel”, contou Carracena.
‘Não posso ficar forçando’
Em seu depoimento, Carracena também afirmou que Índio e Gutemberg estreitaram laços ao longo de 2025, após sua saída do governo. “Eu saí, eu parei, eu parei de trabalhar com Gutemberg, salvo engano, em dezembro do ano passado ou janeiro deste ano. E aí, essa aproximação deles, que se deu ao longo desse ano, eu não tive contato, não tive participação”, disse.
No mês seguinte ao primeiro contato, Índio enviou a Carracena um vídeo de Gutemberg num evento de concessionária de serviço público: “Ficou forte ele, né”, diz Índio, se referindo à relação de Gutemberg com a empresa. “Muito é por causa de você”, respondeu o ex-secretário. Ao fim da conversa, Índio disse que não buscaria mais ajuda de Fonseca: “Não vou mais incomodar ele não, doutor, não posso ficar forçando ele a me ajudar se no coração dele não quer me ajudar”.
Questionado pela PF sobre o motivo de ter dito que a força de Fonseca na concessionária era resultado da ação de Índio, Carracena respondeu: “Olha, deve ter sido algum tipo de favor que o Gabriel deve ter realizado para o Gutemberg e, em razão disso, o Gutemberg ganhou mais força, mas eu não me recordo exatamente qual foi o episódio”.
A investigação também revelou que a facção tinha um projeto político para Índio do Lixão: uma candidatura a vereador em Duque de Caxias, seu reduto político. O plano é mencionado em uma conversa entre Índio e Luiz Eduardo Gonçalves, o Dudu, assessor do ex-deputado TH Joias. Carracena e Índio foram presos pela PF sob acusação de integrar o “braço político” do CV. Gutemberg não foi alvo da operação. Na época da conversa, Índio não tinha mandado de prisão em seu nome.
Outra conversa interceptada pela PF trouxe à tona uma tentativa da facção de mudar o policiamento de uma região da cidade. Em 29 de janeiro de 2024, Índio pediu ajuda ao então deputado TH Joias. “Mano pediu pra você vir aqui. Quer falar com você. Amanhã sem falta, 20h. Tô no vídeo com ele aqui”, escreveu. “O que o mano precisa?”, perguntou o deputado. Segundo a PF, “mano” era uma referência a Luciano Martiniano da Silva, o Pezão, chefe do tráfico do Complexo do Alemão. “Quer que você resolva. Tirar Choque da Gardênia e tentar fazer botar PM normal”, escreveu Índio.
Ligação de sete minutos
A companhia destacada do Batalhão de Choque na Gardênia Azul, na Zona Oeste do Rio, havia sido inaugurada seis meses antes pela PM como resposta à tomada da favela pelo CV, após um ano de confrontos com a milícia. “Tenho muito contato na Gardênia. Vamos ver isso”, prometeu o deputado. Horas depois, TH Joias enviou a Índio um print que mostrava a tela de seu celular em uma ligação de 7 minutos e 5 segundos para um interlocutor identificado como “Carracena Secretário de Governo”. Índio questionou qual era o teor da conversa. “Vai falar com o comandante-geral para entender o que pode ser feito”, respondeu TH. Seis meses depois, a base na Gardênia Azul passou para o comando do batalhão local, o 18º BPM (Jacarepaguá).
Em outro diálogo interceptado pela PF, TH Joias mencionou a Índio um “favor” pedido por Carracena: a recuperação de dois carros roubados que estariam em favelas dominadas pela facção. “Carracena pediu esse favor. Esses dois carros. Um na NH (Nova Holanda) e outro em Manguinhos.” Índio respondeu que conseguiria atender: “Vê exato onde tá cada um. Mando devolver agora”.
Em pelo menos uma oportunidade, Índio mencionou pagamentos ao ex-secretário: em novembro de 2023, após enviar a TH Joias uma foto com um montante de dinheiro em espécie, o suspeito de integrar o CV afirmou que daria mais R$ 90 mil ao deputado para que ele entregasse a Carracena. Já em maio de 2024, Índio e TH elogiaram o ex-secretário em outra conversa: o primeiro disse que Carracena sempre teria estado “firme” com ambos; o segundo respondeu que o ex-secretário “nunca deixou de nos atender”.
Em depoimento à PF, Carracena confirmou que recebeu valores de Índio enquanto trabalhava para o governo, mas alegou que eram referentes a serviços de advocacia que prestava. “Ele me fez diversas consultas durante o período em que tivemos contato. Dessas consultas, só uma efetivamente se tornou processo e recebi uma parte dos valores dos honorários. Os outros ficavam sempre no ‘vou te mandar o dinheiro’, e o dinheiro nunca chegava”, disse.
Procurado, o secretário Gutemberg Fonseca afirmou, por meio de nota, que “desconhece qualquer tipo de reunião com a pessoa citada e não mantém, nem nunca manteve, qualquer relação pessoal, política ou institucional com o indivíduo”. Segundo Fonseca, “caso tenha ocorrido algum contato em evento público, foi estritamente casual e sem qualquer ciência sobre eventual envolvimento ilícito”.
Já a defesa de Carracena alegou, em petição que consta do processo judicial, que a investigação “apoia-se, exclusivamente, em conjecturas e ilações extraídas de falas de outros investigados, sem que se comprove que o requerente forneceu informações sobre operações policiais e recebeu valores por isso”.
2025-11-12 04:30:00



