O músico Marcelo Yuka, baterista e principal compositor da banda O Rappa, deixou sua casa, na Tijuca, Zona Norte do Rio, para se encontrar com o cantor Ed Motta. Naquela sexta-feira, 9 de novembro de 2000, os amigos tinham combinado de ver um show de Max de Castro no Rock In Rio Café, na Barra da Tijuca. Ao volante de sua picape Toyota, Yuka ia virar uma esquina na Rua José Higino, mas parou ao ver um carro cheio de homens armados. Era um “bonde” de criminosos realizando assaltos.
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A cena acionou o instinto de sobrevivência do artista, que só pensou em sair dali. Yuka engatou a marcha à ré e acelerou, mas havia outro carro com bandidos atrás. Ele foi baleado quatro vezes pelas costas. Uma das balas ficou alojada na coluna cervical do baterista, a cinco milímetros de sua medula espinhal. Foi este disparo que deixou o músico de então 34 anos paraplégico, mudando para sempre o curso da vida de um dos maiores compositores da sua geração do rock nacional.
Yuka cresceu no bairro de Campo Grande, Zona Oeste do Rio, e em Angra dos Reis. Chegou a estudar Jornalismo, mas deixou o curso para se dedicar à música. Ele começou sua carreira tocando na KMD5, uma banda de reggae de Belfor Roxo, na Baixada Fluminense. Em 1993, foi chamado para integrar o grupo de apoio do cantor caribenho Papa Winnie em uma turnê no Brasil. Essa formação, com Yuka, Marcelo Lobato, Nelson Meirelles e Alexandre Menezes, foi a base para a fundação do O Rappa.
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Hoje o líder da banda, Marcelo Falcão se juntaria aos demais depois que o grupo colocou um anúncio no Jornal O GLOBO em busca de um vocalista. O cantor foi selecionado entre vários outros.
Yuka estava no auge de sua trajetória como letrista quando levou aqueles tiros. Escrevendo músicas para o Rappa, ele botou para fora o talento e a indignação criando versos poderosos que criticam a desigualdade social e expõem o ponto de vista da população marginalizada. Músicas como “O que sobrou do céu”, “Pescador de Ilusões” e “Me Deixa” ganharam o brasil carregadas pela interpretação fulminante de Falcão. Cada show da banda provocava uma nova catarse do público.
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Em agosto do ano 2000, O Rappa foi o grande vencedor do prêmio Video Music Brasil, da MTV, com o clipe da música “Minha Alma (A paz que eu não quero)”. Lançado no ano anterior, o clipe mostra um menino negro e morador de favela sendo preso e morto por um policial no asfalto.
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Três meses depois, Yuka se tornou ele próprio uma vítima da violência urbana. Na época, circulou o relato de que ele tinha acionado a ré para impedir um assalto que acontecia atrás dele, mas, durante uma entrevista ao Fantástico, em 2001, o próprio baterista esclareceu que não foi isso. Ao ver o carro com bandidos a sua frente, ele acionou a ré para tentar fugir. “Nisso que eu dei ré, o que presumo, é que tinha outro carro que efetuou disparos também, porque eu tomei tiro por trás”, disse ele.
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Yuka foi levado às pressas para o Hospital do Andaraí por uma equipe de policiais militares. “A única coisa que eu precisava era segurar a mão de alguém”, contou ele durante a conversa com Pedro Bial, no Fantástico. O compositor disse que pediu para segurar a mão de uma PM que estava a seu lado, mas ela se negou. “Ela disse que estava lá para ser profissional, e não sentimental”, relembrou o artista, mais de um ano após o crime. “Eu até falei que podia ser outro, mas ninguém falou mais nada”.
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O músico chegou ao hospital às 22h50. Na entrevista ao Fantástico, o baterista contou que a equipe da unidade demorou para atendê-lo. “Parece que me confundiram com um bandido”, afirmou ele ao descrever o atendimento de um técnico de enfermagem. “Eu escutava o cara contando o número de balas no meu corpo e resmungando… Ele foi moroso”. Ainda segundo Yuka, o músico só foi atendido com a devida urgência quando chegou um médico pedindo mais pressa nos cuidados.
No dia seguinte, segundo uma reportagem do Jornal O GLOBO, o neurologista responsável pelo caso chegou a estimar em 50% as chances de Yuka voltar a andar. Mas, tristemente, isso não aconteceu.
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Quarenta dias depois dos tiros, o músico foi a uma apresentação do Rappa na casa de shows Olimpo, na Vila da Penha. Sua presença no palco gerou comoção no público, e ele aproveitou para fazer um discurso contra as injustiças sociais. “Fui atingido por uma bala que se chama desemprego, falta de responsabilidade governamental e burrice, porque um irmão não atira em outro irmão. Se esse cara que atirou soubesse quem é o verdadeiro inimigo dele, eu não estaria numa cadeira de rodas”.
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Mesmo sem tocar bateria, o compositor continuou n’O Rappa, mas, em 2001, ele saiu dizendo que tinha sido expulso da banda. Segundo o documentário “Marcelo Yuka e o caminho das setas” (2012), de Daniela Broitman, o rompimento foi motivado por diferenças ideológicas e questões financeiras, já que Yuka, o principal letrista, recebia a maior parte dos direitos autorais. Em entrevista para a Folha de S. Paulo, após falar sobre a forma como o filme retratara sua saída do grupo, o músico disse que o Rappa tinha se tornado “a maior banda cover de si mesma”.
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Yuka lutou contra a depressão e não deixou o rancor por tudo o que tinha acontecido tomar conta da sua vida. Ele criou a banda F.U.R.T.O. (Frente Urbana de Trabalhos Organizados), que integrava um projeto social com o mesmo nome, e passou a usar ainda mais sua imagem pública para defender causas nas quais acreditava. Em 2005, quando houve um plebiscito para decidir se o comércio de armas de fogo seria banido no Brasil, ele foi um dos artistas mais atuantes a favor da proibição.
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Em 2014, Yuka lançou a biografia “Não se preocupe comigo” (Sextante). Escrito pelo produtor Bruno Levinson, o livro enaltece o papel das mulheres que passaram pela vida do compositor. “As mulheres que estão no livro foram importantes na minha vida porque amaram sem medir esforços alguém que sempre foi escangalhado”, disse o músico ao GLOBO, na época. “Se hoje tenho um entendimento disso aqui (aponta para a cadeira de rodas), foi porque elas me ajudaram, me deram esse norte”.
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“Até o acidente, por exemplo, eu transei de todas as maneiras possíveis, dentro de uma ótica hétero (risos)”, continuou Yuka, em entrevista ao repórter Carlos Albuquerque publicada na capa do Segundo Caderno. “Mas as mulheres que vieram depois, quando eu já não tinha mais nenhuma capacidade de dominação, me apresentaram a uma coisa chamada fazer amor, que eu nunca tinha sentido antes. Acho que essa foi a lição mais forte que tive na cadeira de rodas”.
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Em 2017, Yuka ainda lançou o álbum “Canções para depois do ódio”, segundo ele uma reação, cheia de afeto, à onda de extremismo que já começava a avançar no mundo, depois da primeira eleição do bilionário Donald Trump para a Presidência dos Estados Unidos. “Cada vez mais eu tô ligado na questão do afeto. O que tá faltando agora é afeto”, disse ele ao GLOBO, na época.”Pô, o Trump ganhou, cara. Isso é chocante. Antes, o cara que tinha isso no coração escondia. Hoje, ele bate no peito”.
“Quero propor que exista algo melhor do que isso aqui. Esse não pode ser o final. Se for, é porque não acabou. Vai sair alguma coisa disso”
Com a saúde debilitada depois de dois AVCs, o artista morreu no dia 18 de janeiro de 2019, aos 53 anos, por causa de uma infecção generalizada. No próximo dia 31 de dezembro, Yuka completaria 60 anos. As músicas dele continuam circulando pelas redes sociais. Diante do cotidiano de violência tão presente no Rio, muita gente resgata um verso da canção “Minha Alma” que resume a mensagem deixada pelo compositor ao longo de uma carreira brilhante: “Paz sem voz não é paz, é medo”.
2025-11-09 08:13:00



