Emoção fala mais alto no debate sobre o combate ao crime

Se usarmos os critérios de uma democracia liberal, a operação das polícias Civil e Militar no Morro do Alemão, há uma semana, foi um fracasso. Evidentemente, como demonstram bem mais do que uma pesquisa realizada desde então, não é assim


Se usarmos os critérios de uma democracia liberal, a operação das polícias Civil e Militar no Morro do Alemão, há uma semana, foi um fracasso. Evidentemente, como demonstram bem mais do que uma pesquisa realizada desde então, não é assim que pensa mais da metade dos cariocas e brasileiros. O fato de o fracasso não ser óbvio deveria nos preocupar. A emoção tem falado mais alto que a razão. Então mergulhemos no debate.

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Qual a medida do sucesso? O fato de, desta vez, a polícia ter subido o morro e de não terem morrido inocentes? Não sabemos isso. Jamais, na imprensa, confiamos na palavra da polícia sobre quem são os mortos. Por que, repentinamente, decidimos confiar? Mas aceitemos a hipótese — crível — de que todos os mortos tenham sido traficantes. Não matar inocentes é obrigação da polícia. Não é prova de sucesso.

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Seria sucesso, então, cumprir a missão? A polícia subiu o Alemão com o objetivo de cumprir ordens emitidas por juízes de todo o Brasil. Ao que sabemos até agora, não cumpriu nem metade. Certamente não cumpriu a mais importante, a prisão de Doca, líder do Comando Vermelho. Talvez, então, o CV tenha sido expulso do Alemão? Nada. Não era o objetivo, nem sequer foi tentado. Os facínoras continuam senhores do morro, talvez mais irritados, acuados, portanto mais violentos. Se fracos demais, quiçá expostos a uma operação de retomada. O que põe em risco a vida de quem mora lá.

O que sobra para medir o sucesso é a morte de 121 pessoas. É o que faz tantos de nós considerar que a polícia cumpriu seu papel?

Todas as democracias liberais têm determinados princípios consolidados nas primeiras páginas de suas Constituições. Somos todos iguais perante a lei. Somos inocentes até que se prove o contrário. Temos o direito a um julgamento. A representação legal. A não sermos expostos a castigos cruéis. Esses não são ideais vagos. São resultado do pensamento coletivo de filósofos escoceses, ingleses, franceses e alemães entre o fim do século XVII e meados do XIX. Esses valores definem a civilização ocidental. Abandone-os, e somos pré-modernos. Abrace-os, somos modernos. Essa é a definição sociológica de modernidade.

O que aconteceu na mata acima do Alemão? Não sabemos. De um lado, 117 mortos. Do outro, 4. De cara, uma coisa é certa: o Comando Vermelho não tem um exército profissional. Eles têm armas pesadas, mas não sabem o que fazer ao enfrentar o Bope. Essa é uma informação relevante que leva a outra pergunta. Por que o Bope não foi capaz de prender mais e matar menos?

A partir daí, precisamos mergulhar no debate que obviamente evitamos. Os moradores falam de marcas de algemas nas mãos, pessoas mortas a facadas, gente com tiro na nuca. Hematomas por toda parte. A palavra de que fugimos é tortura. Algum de nós se surpreende com a ideia de que a polícia do Rio tortura? Não deveríamos. É plausível argumentar que os moradores, que vivem sob o jugo do tráfico, façam esse tipo de acusação. São obrigados. Mas então por que foi negado à Defensoria Pública acesso às autópsias dos corpos? Não é um pequeno detalhe dessa história. Mesmo mortos, nós, cidadãos, temos o direito a alguém que nos represente legalmente. É o trabalho da Defensoria. E, sim, nós, cidadãos. Mesmo os que cometem crimes os mais bárbaros. Modernos, pré-modernos.

É evidente que temos um problema. Bandidos, todas cidades têm. Aqui no Rio, o Estado não controla um pedaço imenso da cidade. Da nossa cidade. Vamos fingir que não sabemos que parte do território está sob o comando de funcionários públicos que, quando tiram a farda, atendem pelo nome “milicianos”?

Perdemos território porque governadores escolheram não agir, de Anthony Garotinho para cá. Nossa melhor chance de resolver o problema foi no governo Sérgio Cabral, que não soube lidar com a cleptomania. A direita oferece um único remédio: matar gente. Não resolve. Não é porque é moralmente repugnante. Não resolve porque não atinge a raiz do problema: a ausência do Estado no território. A esquerda? Ela nem sequer formula política de segurança. Dali não vem nada. A esquerda é ausente, covarde, no mais grave problema que o Brasil tem. Nosso problema não são os bandidos, mas o fato de eles, e não nós, controlarem parte da cidade. Nosso problema são políticos incompetentes, governos corruptos e uma polícia apodrecida por dentro. E todos nós sabemos disso há anos.

Então por que tantos de nós aprovamos a ação policial no Alemão, se ela nada resolveu? Se nada adiantou? Se só matou? Pablo Ortellado, neste mesmo espaço, uns dias atrás, com muito mais empatia que eu, foi no ponto: é o espírito de Bukele. É o Leviatã. Do cansaço com a falta de solução, abandonamos o Estado moderno para regredir ao pré-moderno. Renunciamos aos valores liberais em troca de paz. É uma escolha.



Conteúdo Original

2025-11-04 00:06:00

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