Na semana passada, ainda sob o impacto da megaoperação policial com 121 mortos nos complexos da Penha e do Alemão, o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, e o governador do Rio, Cláudio Castro, anunciaram a criação de um Escritório de Combate ao Crime Organizado. A intenção é agregar, nas esferas estadual e federal, ações de combate ao tráfico de drogas. Ouvidos pelo GLOBO, especialistas de diferentes matizes e que já atuaram na coordenação de políticas públicas para a segurança concordam, em sua maioria, que se trata de um avanço importante. Mas apontam caminhos para que os desdobramentos da medida se tornem conquistas reais, como a retomada de territórios hoje sob controle do Comando Vermelho (CV) e de outros grupos criminosos. Entre as propostas apresentadas estão ações que não se limitem às divisas do Rio, o foco da Polícia Federal no combate à entrada de fuzis no Brasil e o debate sobre alterações no Código Penal.
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Com o novo escritório, a ideia é unir dois serviços que já exercem funções semelhantes: o Ficco (Força Integrada de Combate ao Crime Organizado), do governo federal e que tem entre os objetivos desarticular facções criminosas que atuam dentro e fora dos presídios e combater o tráfico de drogas, armas e munições; e o Comitê de Inteligência Financeira e Recuperação de Ativos (Cifra), do governo fluminense.
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Ex-secretário de Segurança Pública do Rio (de 2007 a 2016), José Mariano Beltrame prevê que os desafios devem começar já no planejamento de operações a partir de informações que eventualmente forem obtidas e processadas por essa integração.
— A situação é complexa e exige uma integração de fato, com qualidade, até porque a atual evolução dos negócios do crime organizado no processo de lavagem do dinheiro requer investigações profundas. Os resultados encontrados podem impor intervenções policiais em locais distintos: da Avenida Vieira Souto (em Ipanema) a comunidades de baixa renda e difícil acesso — afirma Beltrame, ao lembrar que o Primeiro Comando da Capital (PCC), nos últimos anos, investiu em uma série de empreendimentos, como empresas de ônibus em São Paulo.
Se integração efetiva é fundamental, obstáculos na política podem ser entraves ao novo escritório, como apontou ontem o colunista Lauro Jardim. A medida é vista com ceticismo nos bastidores tanto do governo Lula quanto no de Castro.
— Não vai dar certo porque ali não há uma relação de confiança — resume um petista graduado a Jardim.
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No Planalto, adiantou o colunista, a aposta é de médio prazo: fazer uma versão Rio de Janeiro da Operação Carbono Oculto, deflagrada em agosto a partir de investigações da PF e da Receita Federal e que mirou os negócios do PCC.
Sociólogo e ex-secretário adjunto de Segurança Pública do Estado de Minas Gerais entre 2003 e 2007, Luís Flávio Sapori também prevê dificuldades para a união anunciada. Segundo ele, para a integração dar certo, será importante a participação de diferentes órgãos na governança, incluindo informações do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), do Ministério Público e das polícias estaduais e federal.
— Se essa estrutura de governança não for apresentada de forma clara em no máximo dez dias, a proposta tende a ficar apenas no discurso das boas intenções. O presidente, o governador e o Ministro da Justiça devem se impor como autoridades políticas para que haja uma integração efetiva desses dados. Tradicionalmente, sempre houve uma dificuldade entre instituições de partilhar dados por questões corporativistas — avalia Sapori.
Coronel da reserva, Mário Sérgio Brito Duarte, que comandava a PM do Rio em 2010, quando o Complexo do Alemão foi ocupado para instauração de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), enxerga o discurso de integração entre os setores de inteligência com mais descrença. É uma falácia, diz ele, ao argumentar que União e estados devem atuar de forma colaborativa.
— Esses sistemas já trabalham de forma colaborativa há mais de 30 anos. Não é propriamente uma novidade. A prioridade é a Polícia Federal evitar a entrada de fuzis no país. E que haja o espírito de colaboração, com vontade política, independentemente de posições ideológicas — diz ele, ao defender ainda penas mais rigorosas para bandidos que forem pegos portando armas “de guerra, como fuzis”. — O foco é que o criminoso tenha medo da lei, saiba que a pena pode ser mais rigorosa — conclui.
Se a centralização dos esforços das inteligências federal e estadual vingar, no entanto, podem ocorrer progressos importantes, opina Alberto Liebling Kopittke, diretor executivo do Instituto Cidade Segura e ex-diretor do Departamento de Políticas, Programas e Projetos da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp). Ele ressalva, porém, que é preciso ir além. Defende investimentos na modernização do sistema prisional do Rio, com objetivo de dificultar a comunicação dos detentos com o lado de fora dos presídios, evitando que os chefes das facções continuem a dar ordens mesmo atrás das grades. Diz que qualquer ação local precisa ser seguida de uma estratégia nacional. E concorda com outros especialistas que advogam que um dos eixos deve ser a repressão à entrada de fuzis no país e, consequentemente, no Rio.
— É uma estratégia para retomar territórios a ser implementada bem devagar para que seja bem-sucedida. O foco não pode ser apenas sufocar as quadrilhas financeiramente, mas também reduzir o poder de fogo delas. A atenção da União ao combate à entrada dos fuzis começou a ser adotada quando Flávio Dino (atual ministro do Supremo Tribunal Federal) ocupou o Ministério da Justiça (2023-2024). Em seguida, no entanto, perdeu força — sustenta.
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Reduzir o poderio bélico dos grupos criminosos, diz Kopittke, seria uma forma de fragilizá-los:
— Com as quadrilhas enfraquecidas, começaríamos a oferecer mais serviços públicos para as comunidades. Se houver apenas a repressão (policial), esses territórios voltarão a ser ocupados pelo tráfico. No caso do Rio, fala-se muito no exemplo de Medellín (Colômbia), onde, com investimentos públicos, conseguiu-se diminuir o poder das quadrilhas. Mas os colombianos tiveram uma vantagem: o uso de fuzis não era tão comum na época.
Especializado em urbanismo social, Juan Sebastian Bustamante foi consultor do governo de Medellín entre 2004 e 2007 num projeto de pacificação de comunidades. Atualmente coordenador do Núcleo de Arquitetura e Cidade do Insper, ele ressalta que a experiência da cidade colombiana evidencia que, para resultados concretos, além do trabalho das polícias e de grupos como o do escritório anunciado na semana passada, dezenas de ações paralelas devem ser implantadas:
— Organismos sociais, educação e geração de acordos são os caminhos. Que entrem nos bairros afetados pela violência os governos, as empresas, as universidades, com bibliotecas parques, centros culturais e recuperação de ruas para garantir a segurança e a atividade no espaço público. Os equipamentos públicos são motores para que a transformação chegue a todos. Foi o rumo tomado por Medellín.
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Nessa estratégia, Ubiratan de Oliveira Ângelo, ex-comandante da PM (2007-2008), reforça outro ponto: resolver as razões que levam jovens, principalmente, a serem recrutados para o tráfico:
— Os jovens buscam o tráfico por se sentirem pertencendo a um grupo que os acolhe e investe na formação deles como “soldados”, e eles recebem dinheiro por isso. Não é por ideologia. Ao oferecer serviços públicos, os governos têm que prestar atenção que precisam dar alternativas que podem não ser obrigatoriamente cursos de formação técnica. A preocupação é apresentar alternativas para que esses jovens se convençam de que podem ter uma ascensão social, melhores perspectivas de vida fora do crime
2025-11-03 04:30:00



