Ex-secretário nacional de Segurança Pública, e com atuação também nessa área nos governos dos estados de Goiás e do Pará, Ricardo Balestreri reconhece que as facções criminosas exercem “poder tirânico” sobre largas porções do território do Rio e que “não se pode permitir o domínio desses bandidos, exercido com armas longas”, que foram apreendidas na operação — 91 fuzis foram tirados das mãos dos criminosos pelas forças de segurança. Para o pesquisador, porém, o poder público vem se escorando somente numa lógica de combate, sem dar sequência a iniciativas que poderiam levar à retomada efetiva de territórios. Balestreri enfatiza que combater o crime organizado “apenas na favela é enganar a população” — segundo ele, a operação Carbono Oculto mostrou arrecadação bilionária em setores formais da economia. A seguir os principais trechos da entrevista.
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O governo do Rio costuma argumentar que as operações ostensivas são necessárias para “cortar capim”, isto é, frear periodicamente o avanço do crime organizado. Esse argumento se sustenta em uma operação como a de anteontem?
Combater o crime dessa maneira desinteligente é como bater em massa de bolo: ela só vai crescer cada vez mais. O discurso do poder público é de que “é melhor isso do que não fazer nada”, que não pode “ficar de braços cruzados”, mas eles na verdade não estão fazendo nada, exceto espetáculo. A única consequência é o pânico na população humilde e trabalhadora. E isso não é culpa da polícia. Ela acaba sendo usada por maus gestores, que inclusive expõem as vidas dos próprios policiais.
Houve quatro policiais mortos, e um deles estava na Polícia Civil há apenas dois meses.
Eu lamento que os policiais, muitos deles sem expertise, sejam mergulhados nessa dinâmica de guerra, em operações mal planejadas. Algumas pessoas se irritam quando digo isso, mas o domínio territorial do crime, embora lembre uma guerra, não é uma situação de guerra. O problema de abordar segurança com a lógica da guerra é que reduz essas mortes a meros “danos colaterais”. E mesmo assim, se o poder público ainda pudesse dizer que “pragmaticamente o sacrifício foi necessário”… Mas não pode, porque são milhares de operações grandes, e o Rio está cada vez pior.
Operações como esta do Rio ajudam de alguma forma a punir integrantes do crime organizado?
Tivemos uma operação recente, a Carbono Oculto (do governo federal, em parceria com o governo de São Paulo), que teve apreensões e não deu nenhum tiro. Todo criminoso tem que ser punido. Os bandidos que dominam as favelas do Rio exercem um poder tirânico e maltratam a população empobrecida no seu dia a dia. Eles precisam ser combatidos, mas é preciso estar atento às consequências sociais, econômicas, aos serviços públicos, e até ao turismo que essas operações causam.
O número de mortos, superando até o de episódios como o massacre do Carandiru, se explica pela força das facções ou pelo tipo de abordagem das forças de segurança nesse episódio?
O crime está cada vez mais armado, mais rico, mais infiltrado nas instituições. E todos esses mais de cem bandidos abatidos, supondo que sejam todos bandidos, amanhã estarão repostos no crime por outros jovens de 14, 15, 16 anos. O que explica esse número de mortos é uma busca frenética e não razoável por causar impacto na opinião pública. Não estou amaciando para bandido, defendo inclusive que as penas para faccionados sejam agravadas, mas o fato é que combater o crime só na favela é enganar a população.
O Fórum Brasileiro de Segurança Pública publicou uma pesquisa recente sobre o que é conhecido da receita anual do crime organizado no Brasil: mais de R$ 140 bilhões desde 2022, ou R$ 30 bilhões por ano. A maior parte disso estava no mercado de combustíveis, com R$ 60 bilhões. Afirmo com convicção que nenhum bandido realmente importante no Brasil mora em uma favela, com esse nível de arrecadação. A população mostra um cansaço legítimo com a falta de segurança, mas o governo deveria se guiar pela sobriedade, e não pela busca do impacto ou por cortinas de fumaça.
O Rio já ensaiou tentativas para retomar territórios no longo prazo, como as UPPs do governo Cabral, que fracassaram, e mais recentemente o Cidade Integrada, iniciado em 2022 e que até agora não vingou. O que deveria ser feito em paralelo ou em alternativa à ostensividade policial?
Se o crime penetra na favela, é porque o Estado de Direito se retirou. A experiência das UPPs, em seu início, foi um breve sopro de inteligência em meio a três ou quatro décadas de políticas desastrosas. A polícia entrou corretamente, mas sozinha. E o modelo cresceu sem ter condições de funcionamento. As políticas de segurança precisam de escala, mas com sobriedade. Em geral, as iniciativas não se sustentam quando são feitas de forma apressada para mostrar algo à opinião pública às vésperas de eleições.
O discurso de combate à criminalidade a qualquer custo vem pautando eleições em vários países da América Latina, como El Salvador e Equador. No Brasil, ele também está mais forte hoje?
Aqui a rotina de megaoperações vem desde a década de 1990, e vejo que muita gente segue propagando essa ideia, que mexe com emoções desordenadas, mas compreensíveis, da população. É uma ilusão. O caso de El Salvador é sintomático de que a falta de solução para o crime organizado não se explica por falta de brutalidade. Houve um clamor popular para resolver um problema antigo, e o atual presidente, Nayib Bukele, propôs a fórmula de instituir um regime sem direito ao contraditório, de certa forma “vender a alma” da democracia em prol da segurança. Mas o que se vê hoje, e que foi relatado em documentos do governo dos EUA, é que o governo de Bukele mantém negociações por baixo dos panos com o crime organizado, sem a população saber.
2025-10-30 04:25:00



