carreira de Ruy Fontes reconta a história do crime em SP

A trajetória profissional do ex-chefe da Polícia Civil de São Paulo Ruy Ferraz Fontes, executado a tiros de fuzil na última segunda-feira, se entrelaça à história da segurança pública e do crime organizado no estado nas últimas três décadas. Pioneiro


A trajetória profissional do ex-chefe da Polícia Civil de São Paulo Ruy Ferraz Fontes, executado a tiros de fuzil na última segunda-feira, se entrelaça à história da segurança pública e do crime organizado no estado nas últimas três décadas. Pioneiro nas investigações contra o Primeiro Comando da Capital (PCC), o policial aposentado foi responsável pela prisão de Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, apontado como principal chefe da facção, teve participação decisiva na elucidação de crimes de enorme repercussão, enquadrou PMs suspeitos de corrupção, fez denúncias contra integrantes da cúpula do governo paulista por laços com traficantes e colecionou desafetos — como o delegado-youtuber Carlos Alberto da Cunha, hoje deputado federal, afastado das operações de rua por sua determinação quando era delegado-geral.

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A carreira de Fontes na polícia deu uma guinada em 1998, a partir do assalto à empresa de transporte de valores Transprev, na Zona Oeste de São Paulo. Numa ação ousada, criminosos passaram semanas monitorando rotinas, sequestraram parentes de funcionários e os obrigaram a facilitar a entrada na firma. A quadrilha fugiu com R$ 15 milhões sem disparar um único tiro.

A partir de um número de bipe — aparelho de comunicação popular nos anos 1990 — anotado em um recibo de conserto de óculos de sol encontrado na lixeira do apartamento usado como cativeiro, Fontes e sua equipe da Delegacia de Roubo a Bancos conectaram o crime a um conhecido assaltante da época: Marcos Willians Camacho, que até então não havia sequer sido “batizado” como membro do PCC. Na casa de Marcola, o delegado apreendeu uma prova cabal de participação no assalto: um croqui das instalações da Transprev.

Graças à investigação de Fontes, a Justiça decretou a prisão do bandido, que acabou sendo capturado no ano seguinte, circulando em um carro de luxo pela Marginal Tietê. Pelo roubo e pelo sequestro, Marcola acabou condenado a uma pena de dez anos. Desde então, nunca mais saiu da cadeia, filiou-se ao PCC e pavimentou o caminho até a cúpula da facção.

Em seu livro Laços de Sangue, lançado em 2017, o procurador de Justiça Marcio Sergio Christino, parceiro de Fontes nas primeiras apurações contra o PCC, conta que, após ser preso, Marcola virou informante e entregou à polícia números de telefones de desafetos para conseguir subir na hierarquia da facção. Segundo Christino, “foi ele também quem indicou a existência das centrais telefônicas”, núcleos de telefonistas que coordenavam conversas coletivas entre presos de diferentes unidades e comparsas fora das grades. As centrais são apontadas atualmente como uma das principais ferramentas responsáveis pelo alastramento do PCC no sistema penitenciário e em todo o estado. Marcola, no entanto, sempre negou ter colaborado com a polícia.

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Apesar de o procurador não revelar o nome dos policiais para quem Marcola teria delatado comparsas, foi Fontes quem abriu a primeira investigação revelando a existência das centrais telefônicas do PCC. Em 2001, o inquérito conduzido pelo delegado, a partir de escutas, levou ao fechamento de mais de 30 núcleos e acabou expondo, pela primeira vez, o organograma da facção e sua hierarquia.

— O Ruy começou a falar sobre a existência do PCC em um momento no qual o governo negava a existência dele. Apesar de existir desde 1993, é só a partir de 2001 que o PCC é assumido como uma realidade pelas autoridades. O trabalho de investigação dele foi fundamental para que os governantes abrissem os olhos — conta o pesquisador Bruno Paes Manso, autor do livro “A Guerra: A ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil”.

Caso investigado pelo ex-delegado Ruy Fontes: morte de juiz pelo PCC — Foto: Roberto Nico/14-3-2003

Fontes também investigou crimes de repercussão ligados à facção, como o assassinato do juiz Antônio José Machado Dias, em 2003. O magistrado, que atuava dos processos de execução penal dos chefes do PCC, foi executado a tiros ao sair do Fórum de Presidente Prudente. O inquérito conduzido pelo delegado revelou, mais uma vez através de escutas, que a ordem para o homicídio partiu de Marcola. Depois da execução, um bilhete escrito pela tesoureira da quadrilha e destinado ao chefão, contando que o crime havia sido consumado, foi apreendido no presídio. Para Fontes, o assassinato tinha como objetivo dar um recado a agentes públicos que viessem a atrapalhar os planos da facção.

— Sem a ordem do líder lá em cima, não tem como alguém de baixo tomar uma decisão por conta própria — disse o delegado Ruy Fontes no dia do julgamento do caso, que resultou numa sentença de 29 anos de prisão para Marcola.

Marcola em 2002, em delegacia liderada à época por Ruy Fontes — Foto: Nilton Fukuda/23-5-2002
Marcola em 2002, em delegacia liderada à época por Ruy Fontes — Foto: Nilton Fukuda/23-5-2002

Em 2006, Fontes voltaria a acusar Marcola, desta vez pelos chamados “Crimes de Maio”, uma onda de atentados ordenados pelo PCC em retaliação à transferência de seus chefes para uma penitenciária de segurança máxima — medida tomada pelo governo paulista a pedido do próprio delegado. Em depoimento à Justiça, ele contou que o bandido, “mesmo quando estava em Regime Disciplinar Diferenciado (RDD, forma mais rígida de cumprimento de pena, com isolamento dos demais presos), contatava seus comparsas soltos através dos advogados que o visitavam”. Ao todo, 564 pessoas foram mortas nos ataques.

Dois meses depois, Marcola se vingaria do agente que conduzia as principais investigações contra ele. Em depoimento prestado na CPI do Tráfico de Armas no Congresso, ele afirmou que Fontes seria um “delegado corrupto” e que já havia dado “dinheiro para ele de tudo que é jeito”. Como a fonte não era confiável, as acusações não prosperaram — e Fontes seguiria com largo prestígio na Polícia Civil por mais três anos.

Em 2009, quando o procurador Antônio Ferreira Pinto assumiu a Secretaria de Segurança, Fontes — o principal nome da polícia no combate ao PCC à época — acabaria transferido da Delegacia de Roubos a Bancos para o modesto 69º Distrito Policial, no extremo leste de SP, região sob forte influência da facção. Desafeto declarado do delegado, Ferreira Pinto tirou da Polícia Civil o protagonismo nas investigações contra o PCC e o entregou à Polícia Militar, que passou a fazer o monitoramento das ligações entre integrantes da quadrilha junto ao Ministério Público.

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No ano seguinte, Fontes foi salvo de uma emboscada preparada por integrantes da facção, que o esperavam sair da delegacia. O plano foi frustrado pelo Ministério Público, que monitorava a quadrilha e acionou a PM para prender os criminosos.

A maior crise envolvendo Fontes na Polícia Civil, no entanto, ocorreu em 2011, após uma quadrilha invadir uma agência do banco Itaú na Avenida Paulista, arrombar mais de cem cofres de clientes de alto padrão e levar joias, dólares e até ouro. O crime é considerado o maior roubo a banco da história do Brasil, com prejuízo estimado em mais de R$ 500 milhões aos clientes.

Mesmo fora da Delegacia de Roubos a Bancos, Fontes abriu uma investigação paralela, recebeu da agência as imagens da ação e chegou a ouvir funcionários — embora estivesse lotado em uma delegacia a dezenas de quilômetros do local do assalto. Não era a primeira vez que isso acontecia: mesmo após a transferência, o delegado conduziu pelo menos outras oito apurações sobre roubos sofridos por bancos em locais fora de sua jurisdição. Quando a história chegou aos ouvidos do secretário Ferreira Pinto, Fontes foi afastado e virou alvo de uma investigação da Corregedoria. No fim, o inquérito acabou arquivado.

Em 2006, atentados do PCC deixaram 564 mortos em SP: Ruy Fontes investigou  a onda de ataques — Foto: Mauricio Lima/AFP/16-5-2006
Em 2006, atentados do PCC deixaram 564 mortos em SP: Ruy Fontes investigou a onda de ataques — Foto: Mauricio Lima/AFP/16-5-2006

Em 2014, Fontes resolveu retaliar Ferreira Pinto. Já de volta a um posto de destaque — a direção da Delegacia de Narcóticos (Denarc) — após a saída de seu desafeto do governo, o policial procurou o MP para denunciar um esquema de concessão irregular de benefícios penais a chefes do PCC presos durante a gestão do rival na Secretaria de Administração Penitenciária (SAP), entre 2006 e 2009. Segundo o delegado, a facção pagava propina a autoridades prisionais para que integrantes da cúpula conseguissem progredir de regime e deixar a cadeia.

No depoimento, ele citou como exemplo o preso Eduardo Lapa dos Santos, que obteve a passagem para o regime semiaberto depois de a SAP informar à Justiça que ele havia sido um detento exemplar nos oito anos em que esteve no sistema, ignorando faltas graves cometidas no período. Em dezembro de 2009, Lapa conseguiu o direito à “saidinha temporária” de fim de ano e não retornou à prisão.

O delegado também apontou nomes de servidores do alto escalão da secretaria que receberiam dinheiro da facção e afirmou ter passado a ser retaliado por Ferreira Pinto após comunicar o caso à pasta. O depoimento motivou a abertura de um procedimento investigatório do MP, que nunca comprovou as acusações.

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O PCC não foi o único alvo do trabalho de Fontes. Em 2008, uma apuração conduzida por ele culminou na prisão de quatro policiais militares acusados de dar apoio a uma quadrilha especializada em roubos de caixas eletrônicos. No dia da ação, o próprio delegado viu dois PMs conversando com observadores do bando, que, sentados fora da agência, passavam informações para quem estava dentro.

Em 2019, Fontes chegou no auge da carreira ao ser nomeado delegado-geral da Polícia Civil pelo então governador João Dória (PSDB). A gestão acabaria marcada pelo afastamento do delegado-youtuber Carlos Alberto da Cunha. Em 2021, Fontes retirou o agente do serviço operacional e determinou a apreensão de seu distintivo e armas funcionais, após Da Cunha afirmar, em vídeo, que havia “ratos” dentro da corporação.

Delegado Da Cunha era youtuber e encenava operações — Foto: Reprodução
Delegado Da Cunha era youtuber e encenava operações — Foto: Reprodução

“A gente tem que estar aqui na internet ganhando poder e crescendo, para as raposas que estão embrenhadas lá em cima, mamando nas tetas há anos, para enxotar elas”, disparou Da Cunha à época.

Após a abertura dos procedimentos administrativos contra o delegado, Fontes passou a ser ameaçado por seus seguidores. Um deles, Madson Danilo Viana Macedo, chegou a mandar mensagens intimidatórias para o WhatsApp pessoal do delegado-geral: “Vou vazar seus dados, tais como telefone, endereço, CPF, RG etc, pra galera te achar pela sua covardia com o Da Cunha. Espero que você morra”, escreveu. Macedo também tentou invadir o celular de Fontes ao enviá-lo um link com um vírus. O chefe da corporação determinou que uma investigação fosse aberta sobre os casos, e o assediador acabou condenado pelos crimes de coação no curso do processo e invasão de dispositivo informático.

Em 2023, Da Cunha recuperou distintivo e armas. Após a morte de Fontes, o hoje deputado prestou condolências em um vídeo: “Um homem que dedicou sua vida à segurança pública não poderia ter sua história interrompida dessa forma. O terrorismo não pode prevalecer. Justiça será feita”.



Conteúdo Original

2025-09-21 03:30:00

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