Execução em SP gera cobrança por proteção para autoridades aposentadas após combate ao crime

A execução do ex-delegado-geral da Polícia Civil de São Paulo Ruy Ferraz Fontes, na última segunda-feira, expôs um problema que há muito preocupa autoridades que combatem o crime organizado no Brasil: o vácuo na proteção quando deixam a função pública.


A execução do ex-delegado-geral da Polícia Civil de São Paulo Ruy Ferraz Fontes, na última segunda-feira, expôs um problema que há muito preocupa autoridades que combatem o crime organizado no Brasil: o vácuo na proteção quando deixam a função pública. Hoje, não existe uma norma unificada nacionalmente para a concessão de escolta para servidores aposentados em possível risco. Com a morte de Fontes — responsável pelas primeiras condenações da cúpula do Primeiro Comando da Capital (PCC) e alvo de ameaças da facção em mais de uma ocasião —, o tema ganhou tração na Assembleia Legislativa paulista, na Câmara dos Deputados e no Ministério da Justiça. Modelos adotados em países como Itália e Estados Unidos poderiam servir de inspiração para eventuais novas regras brasileiras.

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Contudo, enquanto a discussão permanece só no papel, diferentes autoridades ouvidas pelo GLOBO admitem que a emboscada contra Fontes, cujo carro foi atingido por mais de 20 tiros de fuzil, despertou apreensão em quem segue no combate ao poderio das quadrilhas. Em São Paulo, berço do PCC, por exemplo, os delegados-gerais da Polícia Civil têm direito a escolta e podem pedir proteção mesmo depois da aposentadoria, segundo a Secretaria de Segurança Pública, o que não teria ocorrido no caso do policial assassinado. André Pereira, presidente da Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo, afirma, no entanto, que o regramento atual na corporação ainda é incipiente:

— O que temos hoje na Polícia Civil de São Paulo são atos administrativos isolados. Poderíamos ter uma portaria do delegado-geral determinando protocolos mais específicos para situações dessa natureza.

Já para ministérios públicos estaduais, existem resoluções do Conselho Nacional do MP. No Rio, onde atuam grupos como o Comando Vermelho (CV), o Ministério Público fluminense diz que a possibilidade de proteção abrange membros ativos ou inativos. No estado, oito servidores estão sob proteção, sendo um deles aposentado, além de dois ex-procuradores-gerais de Justiça.

Na Bahia — estado que, como mostrou levantamento do GLOBO, tem o maior número de facções em atuação (17) —, o MP local tem comitês que deliberam sobre ações de segurança a serem adotadas para servidores e familiares. Em Pernambuco, a Secretaria de Defesa Social, responsável pelas forças de segurança, informa que cada pedido precisa ser feito ao titular da pasta e avaliado por uma comissão colegiada. Para os servidores aposentados, a norma “autoriza a avaliação em casos excepcionais, desde que todas as exigências formais e de comprovação de risco sejam atendidas”, informa o órgão. Algo parecido é adotado no Tribunal de Justiça pernambucano, onde a proteção aos magistrados aposentados não tem previsão expressa e pode ocorrer mediante análise.

— Não existe uma normatização federal. Cada organização define o que fazer, é uma realidade anacrônica. O caso do doutor Ruy explicitou uma lacuna na segurança pública — frisa Luis Flavio Sapori, especialista em segurança pública da PUC-Minas.

— O confronto com organizações criminosas exige coragem, mas também respaldo permanente para aqueles que põem suas vidas em risco — completa o advogado Walfrido Warde, presidente do Instituto para a Reforma das Relações entre Estado e Empresa (IREE), que está escrevendo um livro com ideias para combater as máfias no Brasil.

Desde a última segunda-feira, o promotor de Justiça Diogo Luiz Deschamps, de 40 anos, reforçou os protocolos de segurança adotados pela família. Abalado pela notícia do atentado contra o ex-delegado-geral, o coordenador regional do Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaeco) de Joinville, do MP de Santa Catarina, reviu medidas de proteção. Antes mesmo da morte de Fontes, para evitar padrões que podem ser identificados por um possível algoz, ele já não mantinha uma rotina única: todos os dias, muda o caminho percorrido até o trabalho e a escola dos filhos.

— A preocupação com a segurança é constante. A gente sabe que, embora não haja esse histórico em Santa Catarina, todos nós temos um alvo nas costas — pontua o promotor.

O grau de proteção a agentes públicos aposentados que combatem redes criminosas poderosas varia entre os países. Sob forte influência dos cartéis de drogas, o México convive com assassinatos frequentes de agentes públicos, mas garante a eles pouquíssima segurança. O país até conta com esquemas de proteção voltados para jornalistas e defensores de direitos humanos, que também podem atender autoridades em risco. A escolta, contudo, é encerrada na aposentadoria.

Já a Itália tem modelo considerado robusto. O enfrentamento das máfias siciliana, napolitana e da ‘Ndrangheta calabresa obrigou o Estado a implementar medidas permanentes mesmo para aposentados e seus familiares. Os assassinatos de juízes como Giovanni Falcone e Paolo Borsellino, nos anos 90, pressionaram o governo italiano a intensificar as políticas de segurança.

— O sistema de proteção da Itália é baseado em uma avaliação de risco realizada por um comitê provincial e ratificada em nível central, por um órgão do Ministério do Interior. As mesmas regras se aplicam a políticos, funcionários públicos e a todos aqueles expostos a situações de risco pessoal. Tem funcionado — diz Giovanni Bombardieri, procurador Distrital Antimáfia de Turim, responsável por conduzir, no passado, investigações que terminaram na prisão do chefão da ‘Ndrangheta, a máfia da Calábria, uma das mais poderosas do mundo.

Nos Estados Unidos, a abordagem combina proteção estatal com soluções privadas em casos de risco persistente. Agentes do FBI, promotores federais e juízes que atuam contra organizações criminosas podem ter proteção garantida não apenas durante o exercício da função, mas também após a aposentadoria, dependendo do nível de ameaça.

No Brasil, a Câmara dos Deputados discute dois projetos de lei sobre o tema. Um deles, de autoria do senador Sérgio Moro (União-PR), prevê proteção a autoridades judiciais ou membros do Ministério Público aposentados e familiares que estejam em situação de risco e sejam alvos em potencial do crime organizado.

O projeto já foi aprovado no plenário do Senado e na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara. Para ir à sanção do presidente da República, só falta ser pautado no plenário da Câmara.

Paralelamente, o deputado Delegado Palumbo (MDB-SP) elaborou em 2024 um projeto de lei que previa utilizar recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP) para proteger autoridades. O texto foi aprovado nas comissões de Finanças e Segurança Pública da Câmara e ainda precisa passar pela CCJ antes de ir ao plenário.

O Ministério da Justiça também elabora proposta com o mesmo teor, que entraria no pacote antifacção. O objetivo é que seja encaminhado ao Planalto nas próximas semanas. Em audiência na Câmara nesta semana, o ministro Ricardo Lewandowski afirmou que o objetivo é “prever a proteção de policiais que estão na linha de frente” contra o crime.

No âmbito estadual, deputados de variadas siglas da Assembleia Legislativa de São Paulo protocolaram ao menos cinco projetos sobre o assunto após a morte de Ruy Fontes.

— Não existe isso na nossa legislação, mas é algo que temos de parar para pensar — declarou o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos).

Uma solução para o problema também é analisada nas secretarias do governo paulista. Coronel da reserva da PM, José Vicente observa que uma norma que contemple apenas quem está no topo das carreiras poderia ser injusta:

— É importante lembrar que autoridade é do soldado ao coronel, do investigador ao delegado mais graduado. Quem está mais exposto é o policial militar que trabalha nas ruas, tanto na ativa quanto aposentado. Para se pensar em uma estrutura para todo aquele que se sinta ameaçado, há de se pensar em uma ampliação de efetivo.

Ex-secretário de Segurança Pública de São Paulo entre 1999 e 2002, Marco Petrelluzzi também chama atenção para o impacto sobre os efetivos das polícias:

— Os recursos são limitados. Qualquer escolta cedida são policiais que estão saindo de um lugar para outro. O cobertor é curto. Quando é necessário, claro, tem que ter, mas sou contra uma concessão de segurança automática. Precisa avaliar caso a caso.



Conteúdo Original

2025-09-20 03:30:00

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