Crime organizado expulsa população e transforma vilarejo no sertão do Ceará em cidade-fantasma

Impulsionado por execuções em praça pública, pichações com ameaças, invasões violentas a residências e comércio, o clima de terror imposto pelo crime organizado transformou um pequeno vilarejo no sertão do Ceará em cidade-fantasma. Membros de uma facção criminosa expulsaram assim,


Impulsionado por execuções em praça pública, pichações com ameaças, invasões violentas a residências e comércio, o clima de terror imposto pelo crime organizado transformou um pequeno vilarejo no sertão do Ceará em cidade-fantasma. Membros de uma facção criminosa expulsaram assim, há cerca de dois meses, de Uiraponga, distrito de Morada Nova, no sertão do Ceará, quase todos os seus cerca de 2 mil moradores. Hoje restam cinco famílias.

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Os conflitos se intensificaram na comunidade, localizada a cerca de 170km de Fortaleza, após o rompimento entre duas facções — o TCP Cangaço, braço do Terceiro Comando Puro, do Rio de Janeiro, e a Guardiões do Estado (GDE), de São João de Jaguaribe, originária do Ceará. Atualmente, o cenário é de completo abandono: ruas desertas, comércio fechado, casas vazias e marcas de tiros espalhadas pelas construções compõem o atual retrato sombrio do local.

Inspirados no cangaço, traficantes transformam vilarejo no no Ceará em ‘cidade fantasma’

Até abril deste ano, o vilarejo era uma típica cidade do interior do Brasil: uma igreja católica com missas aos domingos, um posto de saúde para atendimento a casos de emergência e uma escola municipal elogiada por sua organização faziam parte da estrutura.

— A escola parecia até particular — contou um ex-morador que preferiu não se identificar.

O que não havia, entretanto, era um posto policial, destaca o especialista em segurança pública Wagner Sousa Gomes, formado pela Academia de Polícia Militar General Edgard Facó — responsável pela formação dos oficiais da PM cearense —, bacharel em Direito e pós-graduado em Ciências Jurídicas.

– O Comando de Policiamento já havia solicitado reforço várias vezes, mas nunca foi autorizado. Nem sequer existe um prédio disponível para que a polícia se instale – frisou Wagner.

Hoje, a igreja está sem padre e sem fiéis. O posto de saúde não conta com profissionais, tampouco com pacientes. Já a escola foi temporariamente transformada em um posto policial: onde antes havia professores e alunos, agora há três policiais militares que fazem rondas periódicas pelas ruas desertas.

— O lugar acabou — resume um dos dois ex-moradores, entre os 25 procurados pelo GLOBO, que aceitou falar sob a condição de anonimato.

Um policial militar que conhece a região e que também preferiu manter sua identidade em sigilo explicou ao GLOBO que o desafio na região se torna maior por conta do controle exercido pelos traficantes locais, que, pelo medo, impedem que informações vazem da comunidade.

— Eles matam qualquer um que acharem que falou algo para a polícia ou que tenha se associado a algum inimigo. Sempre com tiros de calibre 12 na cabeça. Isso aterroriza tanto a população que ninguém se arrisca a falar — contou o agente.

O conflito entre TCP Cangaço e GDE

Quando o confronto começou, o TCP Cangaço era liderado por Gilberto de Oliveira Cazuza, conhecido como Mingau. Já a GDE de São João do Jaguaribe estava sob o comando de um homem identificado pelo policial como Márcio da Viúva, que comandaria as ações da facção de dentro do presídio no Ceará.

O interesse pelo pequeno vilarejo tem um motivo: Uiraponga se situa entre seis cidades do Vale do Jaguaribe — Morada Nova, Limoeiro do Norte, Tabuleiro do Norte, Alto Santo, Mauriti e São João do Jaguaribe. Desde 2020, as duas facções coexistiam na região, controlando o tráfico, extorquindo dinheiro de comerciantes e fazendeiros, roubando de gado e praticando pistolagem.

O cenário mudou há cerca de dois anos. Em março de 2023, uma operação da Polícia Civil prendeu cerca de 18 pessoas ligadas ao TCP Cangaço, incluindo ao menos sete parentes de Mingau. Para o agente da Polícia Militar, o grupo funcionava como uma rede de apoio e logística, em estrutura que remete ao antigo cangaço, justificando o nome da facção.

— Isso existe desde a época de Lampião. Eles funcionam como uma rede de logística e informação do bando. Levam comida, avisam quando a polícia passa e para onde ela segue. A única diferença para os cangaceiros antigos é que eles não são errantes; ficam estáticos, circulando e se abrigando dentro do território deles — explicou o policial.

Informações da inteligência da Polícia Civil do Ceará indicam que, após a operação, Mingau se refugiou em uma favela do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro. O enfraquecimento do TCP Cangaço e a fuga de Mingau abriram caminho para que a GDE avançasse sobre territórios antes dominados pelo outro bando, buscando expandir seu controle.

Em uma das investidas, Márcio da Viúva ordenou que o traficante José Witals da Silva Nazário, conhecido como Playboy, assassinasse os braços-direitos de Mingau ainda presentes no distrito: Neriano e Thierry.

Apesar das ordens, o apoio da população local teria impedido que as execuções fossem concluídas, conforme explicou o policial militar. Antes da chegada dos traficantes rivais pela estrada de difícil acesso, Neriano e Thierry já tinham se escondido. Em retaliação, integrantes do GDE executaram um homem que atuava como coiteiro, em praça pública, disparando vários tiros diante dos moradores. Em seguida, deram ordem de expulsão aos habitantes da comunidade.

— A população de Uiraponga apoiava o TCP Cangaço, alguns por benefícios, outros por medo. Com essa rede de coiteiros (pessoas que ajudam a esconder criminosos), os traficantes ficavam praticamente inacessíveis tanto para a polícia quanto para a facção rival. Então, Playboy decidiu expulsar toda a comunidade para que Neriano e Thierry perdessem apoio e logística — relatou o policial.

Playboy foi preso no fim de julho, em São Paulo, durante uma operação integrada das polícias civis do Ceará e de São Paulo. Em nota enviada ao GLOBO, a Polícia Civil do Ceará (PCCE) informou que um segundo suspeito foi detido no dia seguinte, em uma residência no próprio distrito de Uiraponga. Mingau segue foragido e é um dos criminosos mais procurados do Ceará.

Desde então, a PCCE iniciou uma nova fase da investigação, que resultou em seis prisões de integrantes do grupo criminoso atuantes nas seis cidades do Vale do Jaguaribe, no dia 1º de setembro. Ainda assim, o clima de insegurança e abandono permanece no distrito. O retorno da população não aconteceu, e os poucos que ficaram vivem com medo constante.

– Estive lá pessoalmente após a operação. Passei uma noite em Uiraponga para entender a situação de perto. Hoje, na localidade, restam apenas cinco famílias. E elas só continuam lá porque não têm para onde ir – relatou Wagner Sousa.

De acordo com o especialista em segurança pública, mesmo com a operação realizada no início do mês, o cenário piorou: casas vazias tiveram as portas arrombadas, móveis estão revirados e as propriedades estão sendo usadas para consumo de álcool e drogas.

– Apesar das prisões e da presença pontual da polícia, o Estado ainda não garantiu uma estrutura mínima para o retorno seguro dos moradores. Falta tudo: moradias seguras, policiamento permanente, apoio social, assistência logística. A sensação é de abandono completo – acrescentou o especialista.

Questionada pelo GLOBO sobre as possíveis medidas a serem adotadas no distrito, a Defensoria Pública do Estado do Ceará informou, em nota, que “tem atuado junto à comunidade para verificar os direitos civis que estão sendo violados e quais as principais necessidades, em especial, nas áreas de educação, saúde e moradia”. A instituição também ressaltou que “já encaminhou ofícios para a Prefeitura e se reuniu com o Ministério Público para buscar uma solução conjunta”.

*Supervisão de Daniela Dariano



Conteúdo Original

2025-09-18 03:30:00

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