No Rio, os roubos têm hora marcada. A última reportagem da série que analisa e dá rosto aos dados do Mapa do Crime, do GLOBO, destaca que os assaltos não se concentram somente no território, com muitos registros em poucas áreas. Acumulam-se também no tempo. Há dias da semana em que os ladrões agem com maior frequência. E é possível ser ainda mais preciso: em alguns bairros, intervalos de até três horas reúnem grande parte dos casos comunicados às delegacias. Os ponteiros do relógio do medo andam com a rotina do carioca, seja na volta para casa depois do trabalho, durante uma noite que devia ser só de diversão na Lapa ou no momento de vibrar com o time do coração num jogo de futebol no estádio do Maracanã.
CLIQUE AQUI E VEJA NO MAPA DO CRIME COMO SÃO OS ROUBOS NO SEU BAIRRO
O bairro que tem o mesmo nome do lendário palco de finais históricas, como as das Copas do Mundo de 1950 e 2014, foi o terceiro do Rio com mais roubos de celular no ano passado, com 455 registros. Ali, onde ruas ficam lotadas de torcedores a cada jogo, esses crimes se concentraram nas noites de dois dias da semana: 22,6% dos casos aconteceram apenas às quartas e quintas-feiras, entre 19h e meia-noite — justamente nos dias e horários em que mais comumente ocorrem as partidas. Foi numa dessas noites que o analista financeiro Matheus Furtado, de 34 anos, viu a euforia da arquibancada virar susto no pós-jogo. Em 11 de julho do ano passado, após assistirem ao Flamengo perder por 2 a 1 para o Fortaleza, Furtado e sua esposa voltaram andando para casa, no mesmo bairro. No trajeto, resolveram parar para comer numa lanchonete. Aquela não era uma quinta-feira de sorte.
— Por volta da meia-noite, fomos abordados por dois homens armados numa motocicleta. Levaram tudo: celulares, aliança, dinheiro… Não sobrou nada — relata Matheus.
- O gatilho da violência: Rio concentra 43% das apreensões de fuzis, armas de guerra que desconfiguraram o estado em cinco décadas
- Vinícius Drumond: Bicheiro que escapou de atentado faz parte da ‘Santíssima Trindade’, nova cúpula do bicho; entenda
O casal usou o GPS para rastrear os aparelhos e, na mesma noite, acompanhou ambos sendo levados para a Mangueira, favela vizinha ao Maracanã. No dia seguinte, seguiram para a Rua dos Andradas, no centro do Rio, nas imediações do Camelódromo da Uruguaiana, conhecido ponto de revenda de celulares roubados. Matheus chegou a fazer o registro de ocorrência na 20ª DP (Vila Isabel), mas nunca conseguiu reaver os aparelhos. Cinco meses depois, quando havia acabado de quitar o celular novo, foi roubado novamente, dessa vez, na Glória, bairro da Zona Sul onde crimes desse tipo cresceram 34%.
Já o Centro, recordista de roubos de celular e a pedestres na cidade, apesar de receber um grande contingente de pessoas de toda a Região Metropolitana em horário comercial durante os dias úteis, teve sua maior concentração de registros nos fins de semana, em momentos em que o bairro é destino de pessoas que buscam se divertir, principalmente, na Lapa, tradicional reduto da boemia carioca. Das 1.622 subtrações de aparelhos telefônicos registradas em 2024, um total de 215 (ou 13%) aconteceu nos fins de semana, entre 22h e 3h. O mesmo se dá com os ataques a pedestres: 12,4% se acumularam nas madrugadas de sábado e domingo — um padrão único entre todos os bairros cariocas.
Em fevereiro de 2024, a jornalista Suzana Carqueija, de 27 anos, vivenciou a sensação de passar da alegria ao pavor quando saía de um aniversário num bar da região. Por volta das 2h de um sábado, ela teve o celular roubado por um homem com uma faca quando pedia um carro por aplicativo para ir para casa.
— Ele apontou uma faca, tirou o celular da minha mão e foi embora. Foi no meio de muita gente, uma confusão de carros em volta. Isso que mais me impressiona até hoje — conta Suzana.
- Contragolpe sangrento: Após se alastrar por 21 estados, Comando Vermelho trava guerra expansionista no Rio e já tomou 19 comunidades da milícia
No impulso, uma amiga que a acompanhava ainda tentou correr atrás do assaltante, tropeçou e caiu no meio da rua. O trauma fez com que a jornalista mudasse seus hábitos.
— Nunca mais voltei àquele bar. Depois disso, comecei a tomar mais cuidado na hora de sair de qualquer bar ou festa. Não saio mais com o celular na mão, mesmo quando tem movimento — completou a jornalista.
Hora do crime: último dia de reportagens do Mapa do Crime mostra que há faixas de horário preferidas por criminosos em alguns bairros
No Maracanã, crime se concentra em noites de jogos no estádio, enquanto, no Centro, acontece nas noites e madrugadas dos fins de semana
- Narcocultura, violência arraigada no cotidiano e o vácuo do Estado nas favelas: debates que voltam à cena após o caso do MC Poze
O período noturno concentrou os picos de roubos a pedestres na maior parte dos bairros. Os horários com maior acúmulo de casos, no entanto, variaram. Em Botafogo, na Zona Sul, foi das 20h às 23h, intervalo em que ocorreram 28% dos assaltos. A mesma janela acumulou 29,9% das ocorrências na Tijuca, na Zona Norte. Já na Barra da Tijuca, na Zona Oeste, o horário mais comum para roubos a transeuntes foi um pouco mais cedo: 35% dos registros se concentraram entre 19h e 22h.
Além da quantidade de vítimas “à disposição” dos ladrões nos bairros, dinâmicas criminais regionais influenciam os horários com mais crimes. O intervalo entre o fim do turno de trabalho e a volta para casa acaba sendo também o de maior parte dos roubos de veículos. Na Zona Norte, foi o caso da Pavuna, vice-líder no ranking do crime, onde 30% das 637 ocorrências registradas em 2024 se deram entre 17h e 20h. Na Penha, o horário de pico foi um pouco mais tarde: 31% dos registros ocorreram entre 18h e 21h.
Mapa do Crime: último dia da série mostra a ‘hora do crime’
Esse padrão, no entanto, é interrompido em áreas que são cenário de disputas entre grupos criminosos, como a Grande Jacarepaguá, onde o Comando Vermelho tomou da milícia 20 favelas ao longo de 2024.
Na Taquara, bairro com maior quantidade de registros na região, o horário de auge dos roubos de carros foi mais tarde: 29% dos casos aconteceram entre 21h e meia-noite. Em Jacarepaguá, o mesmo intervalo concentrou 32% dos roubos. Policiais afirmam que esse desvio do padrão acontece porque os roubos em regiões conflagradas têm um perfil diferente, mais voltado ao próprio conflito do que para alimentar o mercado ilegal. Os bandidos na Baixada de Jacarepaguá, como já mostrou a série baseada no Mapa do Crime, muitas vezes usam esses veículos em invasões de comunidades e fugas da polícia.
- Execuções, desaparecimentos, terreiros de Umbanda proibidos: Complexo de Israel vive sob ditadura do traficante Peixão, que diz ser evangélico
O coronel reformado e antropólogo Robson Rodrigues, ex-chefe de Estado-Maior da Polícia Militar do Rio, afirma, no entanto, que o combate ao roubo de veículo não pode se restringir ao policiamento ostensivo nas manchas criminais.
— Não dá para combater o roubo de veículos só colocando PMs na Avenida Brasil ou nos pontos de maior índice. É preciso ir até os ferros-velhos clandestinos, os desmanches. Ir à raiz dessa engrenagem que é alimentada pelo roubo. A repressão precisa ser inteligente e focada em desarticular o mercado, e não apenas em conter o sintoma — afirma o especialista em segurança.
- Pistolas croatas e fuzis turcos: como agia chefe do Alemão apontado pela PF como um dos principais compradores de armas do país
Já os roubos em coletivos, numa leitura da cidade como um todo, concentram-se no horário da volta para casa. No entanto, os intervalos variam conforme a localização dos bairros e a distância de polos regionais.
É como se o crime se movesse com a massa de passageiros. A Cidade Nova, por exemplo, onde há um grande contingente de trabalhadores, teve 44,6% dos seus casos concentrados entre 17h e 20h — horário da volta para casa. Já nos bairros ao longo da Avenida Brasil, mais distantes da região central, o horário de pico foi um pouco mais tarde, das 19h às 22h. Foi neste horário que se concentraram 48,4% dos roubos no Caju e 52,2% dos ocorridos na Maré, bairros no trajeto da Avenida Brasil com alta de casos em 2024.

Mapa do Crime: 1º dia da série de reportagens mostra bairros onde roubos aumentaram
Questionada sobre a investigação do roubo que vitimou o analista financeiro Matheus Furtado, a Polícia Civil afirmou que “diligências estão em andamento para apurar a autoria do crime”.
2025-07-27 00:01:00