tido como ‘crime invisível’, tráfico de pessoas aumenta 60% no país em cinco anos

O convite feito pela amiga da família era uma chance única de, finalmente, mudar de vida. Recém-viúva, a venezuelana de 33 anos sustentava sozinha os dois filhos pequenos, e a proposta de migrar para o Brasil e trabalhar como doméstica


O convite feito pela amiga da família era uma chance única de, finalmente, mudar de vida. Recém-viúva, a venezuelana de 33 anos sustentava sozinha os dois filhos pequenos, e a proposta de migrar para o Brasil e trabalhar como doméstica significou uma oportunidade de dar condições melhores às crianças. Parecia um bom negócio. O empregador ajudou a retirar o passaporte, comprou sua passagem internacional, deu dinheiro para gastos com a viagem e providenciou a hospedagem. Ao chegar no país, ela descobriu a cilada. O homem que a recepcionou no apartamento onde ela iria trabalhar era, na verdade, traficante de drogas. Em vez de faxina, ela deveria ser mula para transportar entorpecentes até países da Europa. Como se negou a engolir as cápsulas de cocaína, apanhou e foi estuprada durante três dias. Em um descuido do aliciador, conseguiu chamar a atenção dos vizinhos, que acionaram a polícia. Assim foi resgatada.

  • São Paulo: ‘Fui aliciada por uma amiga’, conta brasileira vítima de tráfico humano em Mianmar
  • Vivi para contar: ‘Era espancado e obrigado a cantar músicas motivacionais’, diz vítima de tráfico humano em Mianmar

— As feridas feitas pelo cabo de vassoura passaram, mas a cicatriz vai ficar para sempre. Até hoje, lembro de tudo o tempo todo. Preciso de remédio para dormir. Minha vida é trabalho e casa, com medo de ser descoberta. Vou ficar o resto da minha vida marcada — disse ela, sob a condição de anonimato.

A venezuelana é uma sobrevivente do tráfico de pessoas, um crime relativamente novo na legislação brasileira e ainda pouco explorado pelo Poder Judiciário, segundo especialistas. Só em 2016 o Código Penal, de 1940, ganhou um artigo dedicado a uma forma mais ampla do tráfico humano, que consiste em agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher uma pessoa, diante de ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, para cinco fins: remoção de órgãos, submissão a trabalho em condições análogas à escravidão, servidão, adoção ilegal ou exploração sexual. Antes, a legislação contemplava apenas a finalidade sexual.

Bruna foi vítima nos anos 1990 — Foto: Edilson Dantas

— O que é o tráfico de pessoas? É a pessoa ter lucro explorando outro ser humano. Não importa se o tráfico é municipal, nacional, internacional. O lucro é o definidor da questão criminal — afirma Anália Belisa Ribeiro, doutora em políticas públicas de enfrentamento ao tráfico de pessoas.

É consenso entre quem trabalha com o tema que o tráfico humano ainda é um crime invisível e subnotificado. O número de inquéritos da Polícia Federal instaurados para investigar os casos passou de 322, em 2020, para 511, em 2024 — um crescimento de quase 60%, segundo um levantamento exclusivo do Ministério Público Federal, feito a pedido do GLOBO. Nesses cinco anos, foram abertas 1.946 investigações. Apesar do incremento, as ações penais propostas na Justiça no período são ínfimas: 183, menos de 10% do total de investigações. Ao todo, 211 processos chegaram aos tribunais superiores, em grau de recurso.

O vendedor Carlos Antonio dos Santos Oliveira, de 42 anos, saiu de Salvador em janeiro de 2023 atraído pela promessa de um salário de R$ 2 mil por mês, para trabalhar em uma plantação de uvas em Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul. Sua missão, conforme descrevia a mensagem recebida pelo WhatsApp, era a de reunir pelo menos outros 50 trabalhadores para a viagem. Oliveira se empenhou. A contratante era uma empresa que terceirizava mão de obra para fazendas que abasteciam vinícolas conhecidas. Em pouco tempo, conseguiu reunir um grupo de interessados.

Na viagem de ônibus de quatro dias, o grupo angariado por ele não recebeu comida nem água. Ao chegarem às plantações, às 5h da manhã, os trabalhadores foram direto para a colheita. Na hora do almoço, receberam macarrão azedo.

— Para quem não tem conhecimento nem estudo, o dinheiro que oferecem é bastante. Eles buscam aquelas pessoas que têm um sonho. O meu era cobrir minha casa com telhas. Mas depois descobri que não era nada aquilo — contou Oliveira.

Demorou cerca de dez dias para Oliveira perceber que estava sendo explorado. As jornadas de trabalho chegavam a 15 horas, e os empregadores ofereciam uniformes molhados. Cerca de 20 homens dividiam um quarto. Além do expediente exaustivo e das condições precárias, os trabalhadores que ousavam reclamar eram torturados.

Oliveira conta que os vigias contratados pela empresa, muitos deles policiais, usavam armas do tipo taser e de fogo. Atiravam para cima para intimidar os aliciados. Batiam com tacos de beisebol, jogavam spray de pimenta e davam choque elétrico contra quem não seguia as regras. Até que alguns deles conseguiram fugir e entraram em contato com a polícia. Mais de 200 trabalhadores foram resgatados e enviados de volta para casa. Mais de dois anos depois, Oliveira ainda espera a indenização.

O crime de tráfico humano quase nunca ocorre sozinho. Em geral, está associado a infrações ambientais, como a exploração ilegal de madeira e minérios na Amazônia. Ou ainda ao trabalho análogo à escravidão em cultivos agrícolas em diferentes regiões do Brasil ou em países do sudeste asiático.

Os tribunais, entretanto, nem sempre incluem o tráfico de pessoas ao implicar judicialmente os autores dos crimes, na avaliação de Anália. Ela defende a necessidade de capacitação na área jurídica para que policiais, promotores, procuradores e juízes desenvolvam uma “escuta qualificada” e reconheçam a prática.

— Uma fatia grande dos servidores que têm a missão de combater esse tipo de crime o desconhece, porque não teve um processo formativo adequado. O crime ocorre debaixo dos nossos narizes e não percebemos — ressalta. — Outro agravante é que as vítimas não denunciam. Por medo, vergonha ou culpa, por não se reconhecerem como vítimas, por não terem acesso à informação, por serem ameaçados pelos aliciadores.

A criação recente pelo Ministério Público Federal de uma unidade dedicada a combater o tráfico de pessoas foi bem recebida pelos estudiosos do tema. Em operação desde outubro passado, a Unidade Nacional de Enfrentamento ao Tráfico Internacional de Pessoas e ao Contrabando de Migrantes é coordenada pela procuradora Stella Fátima Scampini. Ela relata que o perfil inicial da vítima, de pessoas em maior situação de vulnerabilidade, está mudando.

— Muitas vezes, a pessoa até tem um esclarecimento, fala inglês, é jovem. Mas acaba iludida com aquele falso anúncio de emprego. Temos tido casos muito singulares, como dos brasileiros sendo aliciados e levados para a Ásia para aplicar fraudes virtuais para o resto do mundo, e lá submetidos a condições de trabalho análoga à escravidão — afirma Scampini.

Foi o caso Phelipe de Moura Ferreira e Luckas Viana dos Santos, dois brasileiros vítimas de tráfico humano, resgatados em fevereiro. Atraídos por falsas ofertas de emprego na Tailândia, os jovens acabaram sendo levados para Mianmar, país vizinho que vive em guerra civil. Lá, foram forçados a trabalhar em um esquema de golpes online, conhecido como “catfishing”. Durante três meses, permaneceram em cárcere privado e foram vítimas de torturas, golpes e ameaças.

Uma pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), de 2021, apresentou um diagnóstico sobre o funcionamento do sistema de Justiça brasileiro na repressão do tráfico internacional de pessoas. O estudo analisou 144 ações penais envolvendo esse crime. Ao final do trâmite processual, 121 réus (34,57%) foram condenados por todos os crimes denunciados e outros 70 (20%) por pelo menos um dos crimes de que foram acusados. Outros 120 réus (34,29%) foram absolvidos. O levantamento descobriu algo desconcertante: o prazo médio para se chegar à pena de um acusado é de dez anos, dez meses e 16 dias.

— A gente já sabe que a justiça é morosa. Mas, no caso do tráfico de pessoas, ela consegue ser boa parte de uma vida inteira — ressalta Lívia Mendes Moreira Miraglia, coordenadora da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da UFMG. — Para piorar, é mais barato escravizar alguém do que perder uma mala ou ter um voo atrasado. A indenização que os trabalhadores recebem tende a ser menor do que a de um consumidor que perdeu um voo ou teve uma mala extraviada.

Ainda de acordo com o estudo da UFMG, os principais destinos das vítimas, a grande maioria para a exploração sexual, foram Espanha, Itália, Portugal e Suíça. Foi o que aconteceu com a professora e gerontóloga Bruna Rocha, de 46 anos. No final dos anos 1990, Bruna viajou para a Europa com uma proposta de trabalho: fazer programas em boates na Espanha e na Itália. Ao sair do Brasil, ela recebeu 10 mil euros para passagem e hospedagem. Depois de pagar o valor, ela ficaria com os lucros dos programas. Ao chegar lá, não havia boate alguma. Tomaram o passaporte dela para ficar impossibilitada de voltar. Ela precisava se prostituir na rua, e sua dívida só aumentava.

— Foi onde começou minha situação de peregrinação. Algumas meninas apanhavam porque não ganhavam dinheiro. Toda semana tinha uma pega para exemplo, que apanhava na frente de todo mundo. A cafetina dizia: “Você está apanhando porque é penosa, porque é morta de fome, veio aqui para tirar o pão da boca dos outros” — lembra Bruna.

Ela conseguiu sair depois de mais de um ano, ao ameaçar a aliciadora dizendo que reportaria a situação à Polícia Federal. Só décadas mais tarde, durante uma aula na faculdade de Ciências Humanas, compreendeu que foi vítima de tráfico de pessoas. Hoje Bruna usa sua história para alertar a comunidade LGBTQI+, que considera mais vulnerável e com vidas mais precárias, sobre os riscos das ofertas de emprego que parecem irrecusáveis.



Conteúdo Original

2025-07-20 03:30:00

Posts Recentes

PUBLICIDADE

PUBLICIDADE